tag:blogger.com,1999:blog-85853454681023364702024-03-13T14:32:53.197-07:00Cafeína LetradaContos, crônicas e bate-papo. E café, muito café.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.comBlogger11125tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-91832196596726005842013-01-02T19:01:00.004-08:002013-01-02T19:01:45.656-08:00De Olhos Fechados - Parte 1<br />
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<b><span style="background: white; color: #555555; font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: Arial;"><br />Saens Peña<o:p></o:p></span></b></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<b><span style="background: white; color: #555555; font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: Arial;">Por Heder Leite<o:p></o:p></span></b></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<i><span style="background: white; color: #555555; font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: Arial;">“O que é que desvirtua e ensina?</span></i><i><span style="color: #555555; font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: Arial;"><br style="text-align: start;" />
<span style="background: white;"><span style="text-align: start;">O que fizemos de nossas próprias vidas</span>”<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<i><span style="background: white; color: #555555; font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: Arial;">Manfredini, A Montanha Mágica</span></i><b><i><span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><o:p></o:p></span></i></b></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Gregório acorda todos os dias
bem cedo. Veste sua camiseta quadriculada, branca com azul, com o emblema de
sua empresa, a Blue Beads, uma firma especializada em contabilidade. O nome
fora sugerido por uma ex-namorada para dar um ar americanizado à empresa, como
se isso fosse atrair grandes empresários. Não funcionou muito. Seu escritório
atende basicamente alguns comerciantes do Centro e colegas de seu bairro.
Resolveu não mudar o nome da empresa porque iria gastar muito e no fundo achava
o nome diferente. Seu pai, porém, sempre achou ridículo aquele nome.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> De posse de sua bolsa lateral, sua
camisa azul e branca e uma calça jeans um pouco desbotada, Gregório desce a
escadaria da Estação Saens Peña todos os dias às sete horas em ponto, com um
copo descartável na mão esquerda, cheio de café meio frio, tomando aos poucos
desde a saída de sua casa, um sobrado antigo da Desembargador Isidro. Faz
questão de comprar o bilhete pela manhã; gosta desta rotina. Assim que compra o
bilhete duplo, joga o copo com um dedo de café na lixeira e desce as escadas em
direção ao vagão. Poderia escutar uma música nesse tempo, assobiar, ler as
manchetes dos jornais. Poderia se Gregório não preferisse fazer, em pé,
palavras cruzadas, preenchendo as lacunas durante a espera do vagão. Todos os
dias era assim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Gregório deixa as pessoas mais
alvoroçadas entrarem na frente; não busca uma cadeira, prefere ficar de pé.
Acha que pode observar melhor as pessoas que entram e saem do trem. Gosta de
perceber os imprevistos da viagem, as esquisitices matutinas, os olhares artesanais,
as faces medonhas e as roupas delinquentes. Escora-se numa das várias hastes
centrais do trem, ajeita a caneta com a boca e se prepara para mais uma página
de seu passatempo predileto. As portas se fechavam quando Gregório parou num
desafio: “<i>desvirtuar</i>”. Precisava de
um sinônimo, nove letras. Portas fechadas, o trem andando. Gregório examina ao
seu redor e vê uma menina, olhos claros, cabelos lisos e loiros. Tinha uns dez,
onze anos, no máximo. Encarou aqueles olhos e pensou na palavra “desvirtuar”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Pensou nas flores de sua mocidade, nas
palavras que foram embora, nos amores não vividos. “Desvirtuar”, não tinha nada
a ver com isso. Terminava em “er”, cruzava com a palavra “cheio”. Gregório
pensava nas razões de uma criança tão jovem viajar de metrô tão cedo; não ia
para escola, nem trabalhar; era muito jovem pra isso. E também não estava de
uniforme. Vira que em seu rosto tinha uma marca, meio azulada ou violácea. A
menina tentava esconder esta marca, era notório. Gregório olhava a marca e
percebia que aquilo a incomodava. O contador fez uma cópia em sua mente daquela
marca ou mancha e fechou os olhos. Gregório pensa de olhos fechados, é assim
que faz com as letras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> “Desvirtuar”, pensava no rosto da
menina. Naquela mancha em sua bochecha, poderia ser uma doença rara, marca de
família, um câncer. Ela deveria estar indo para algum hospital, tiraria aquela
mancha com um bisturi elétrico ou coisa parecida. Ou não. Mas aonde a menina
iria tão cedo? “Desvirtuar”, nove letras, termina em “er”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> A menina poderia estar indo visitar os
primos, os tios. Poderia estar de férias, passar alguns dias com a avó. Mas isso
não desvirtua a menina nem seus entes. Gregório se lembrava de seus clientes
pedindo favores ilegais que pudessem diminuir os encargos no final do mês.
Gregório nunca aceitava, talvez por essa razão não tinha grandes empresários em
sua carteira de clientes. Não tinha nenhuma mancha em sua empresa, como aquela da
menina, violácea, azulada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> O trem para, São Francisco Xavier. Gregório
forçava a mente, não abria os olhos; assim podia ver a menina loira rindo de si
mesma, limpando o rosto com um pedaço de papel, do suco de uva que sua mãe
preparara naquela manhã. Saindo do vagão, subiu a escadaria em direção a casa
de sua amiguinha de escola; iam fazer piquenique no Alto da Boa Vista. Gregório
abriu os olhos e não viu mais a menina. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">“Desvirtuar”, nove letras.
Gregório distorceu a imagem daquela princesinha. Sua mancha era singela, pura e
doce. De olhos fechados, Gregório consertou a imagem que distorceu à primeira
vista. Antes mesmo de as portas se fecharem, sua caneta completa as lacunas em
branco e escreve “distorcer”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O vagão volta a andar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Gregório ainda não chegou a sua
estação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: right; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">(<i>Continua...</i>)</span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-60891519866412649012013-01-02T16:24:00.000-08:002013-01-02T16:28:08.200-08:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 10<br />
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b>Um Folclore Americano</b><o:p></o:p></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Por Heder Leite<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Jaime sorri nos cantos de sua rua como
se a sorte estivesse ao seu lado, o comando de suas ações dependesse apenas de
si. Sorri pelo sorriso alheio, espera o bom tempo, pelas cores do arco-íris que
não distingue, sorri pela sua vida, sorri pela morte, um fado tão leve quanto à
própria razão de continuar vivo. Jaime ri para esconder seu choro; seu choro
que inunda a Rua dos Inválidos, que seca sua alma, seu brilho.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Duas pessoas conversam no lado esquerdo
da rua, de quem vai em direção à Mem de Sá. Uma mulher, aparentando uns
quarenta anos e um homem, talvez um pouco mais velho. Refletem à mente de Jaime
todos os sorrisos e agrados, sua lente enxerga uma estátua quebrada e ao seu
lado o artesão, que tenta reparar-lhe algumas partes. Parece Vênus, parece de
pedra sabão, parece uma santa. Não fossem os artefatos humanos, seria posta em
alguma parte na Igreja da rua. Mas Jaime enxergava o suor, sua transpiração
parecia corroer aquela pedra, de uma forma que o artesão não conseguia acertar.
Seu suor não vinha das axilas, de suas coxas; seu suor vinha das entranhas e
escondia por completo sua forma. Aquela pedra chorava.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> O artesão parecia acostumado em reparar
estátuas. Usava suas espátulas dando forma ao disforme; alisava a pedra com
lixa, cortava as arestas, pichava quando necessário e envernizava a tez com seu
tom mais brilhante. Jaime se levantou quando o calor do forte sol fez suar a
sua face. Sugeriu uma nova canção, entoando os acordes de seu violino ao seu
próprio choro, parecia querer ajudar a reparar as arestas daquela estátua.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Percebia a ferida em seu ventre; o
sangue era escuro, algo batido, parecia coagulado. O sangue escorria pelos
cantos da calçada, por onde também passavam as lágrimas do velho cego. Misturadas,
formavam um soro ralo, de angústia, ódio, tédio e medo. O artesão tentava
distinguir o que era de Jaime e o que era da estátua. Tentava descansar o
sangue da estátua, tirar-lhe o medo, seus demônios, seus fantasmas. Coava o
soro velho e batido e devolvia-lhe o que achava certo. Separou-lhes ao som que
ecoava pela Rua dos Inválidos, a mesma rua que sorriu para Jaime, que se abriu
e se fechou, que foi o início e que seria o fim. O artesão precisava dialisar
aquelas escórias, precisava devolver-lhes o que lhes eram sadios e tirar-lhes a
sombra, o incenso incomum, o choro seco, o olhar cego.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> O artesão atravessava a rua e dava o
sinal de cura necessário, o reparo preciso, o alinhamento bem definido. Jaime
percebia a estátua na outra calçada com braços fortes, alimentada com o sangue
purificado, dialisado. O choro que se misturava ao sangue se confundia com o
suor, apesar de o artesão já ter certeza de que do velho cego só saíam lágrimas
de contentamento. Jaime sabia que ninguém é capaz de distinguir a diferença das
lágrimas; podem ser de dor, de tristeza, de júbilo. Por que as suas seriam de
contentamento? O tom de sua música podia decifrar isso, dar sinais e pistas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Seu tom poderia ser distinguido pelos
vendedores ambulantes, pelo floricultor, pelas crianças quase abandonadas,
misturadas a pequenos pivetes que consomem a região. O olhar de Jaime por vezes
se fechou para essas coisas que entristeciam sua música; preferia enxergar a
bela noiva na porta da Igreja, escutar com atenção as reivindicações dos
moradores; enxergava a beleza de Matilde nas várias meninas que por ali
passavam, sua roupa em uma, seus olhos e lábios, noutras. Tentava não recordar
de seus velhos amigos, que pudessem lhe fazer sentir-se mal naquele dia.
Tentava dia após dia não mais chorar, não mais sofrer e deixar que sua mente,
que lhe acompanhou por tantos anos sem sua principal fonte de memória,
descansasse. Queria que parecesse apenas um folclore americano, desconhecido e
mudo. A Rua dos Inválidos não permitiria que Jaime fosse um folclore.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Sua canção aos poucos foi se aquietando;
a estátua na outra calçada jazia em completa forma. A ferida em seu ventre
parecia já cicatrizada e pôde, novamente, andar. O artesão guardava suas
ferramentas, secava o seu suor, limpava os instrumentos. Tinha a sensação de
dever cumprido; atravessou a rua, tirou o violino dos braços do velho cego,
puxou seu chapéu e protegeu sua face contra o sol escaldante. Esticou o corpo
de Jaime na esquina da Rua dos Inválidos e preparou-lhe uma rápida despedida.
Ao lado de seu violino, seu velho e fraco cachorro lambia suas orelhas. Com as
patas mexia nas cordas surdas do instrumento, como se fizesse um coro de
agradecimento. As pessoas choravam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Jaime sorria para esconder a dor. Sabia
que não podia mudar o seu destino e entoava canções para alegria alheia. Não
queria que sua dor fosse transmitida como um vírus; queria abraçar a todos com
sua canção. Sabe que deve ter se enganado em muitos reflexos, mas era sua alma
que falava para uma mente que não podia mais ver. Aquela rua jamais permitiria
que Jaime fosse apenas um folclore.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">A canção de Jaime ecoa pela Rua
dos Inválidos. Seus reflexos estão em suas lentes opacas, mas seu olhar
continuará brilhando nas mentes daqueles que puderam ouvir de sua canção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b>Fim</b></span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-71998222902290936592012-10-06T18:56:00.001-07:002012-10-06T19:12:14.014-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 9<br />
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><b>Le Fantôme</b></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><b>Por Heder Leite</b></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">A velhice era a doença de Jaime; a cegueira, a sua força.
Suas canções transpassavam a Rua dos Inválidos; eram ouvidas até na Praça da
República. As pessoas que se admiravam com seus cânticos levavam consigo os
tons mais modestos e mais agudos para casa. Levavam as expressões, o seu suor,
as suas lágrimas. Jaime deixava sua emoção aparecer, não conseguia esconder o
que sentia. Seu tom era sincero, sua música o decifrava. E não deixava mágoas
nem dúvidas. As pessoas levavam Jaime para casa, por completo.</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Naquela tarde de outubro, Jaime não conseguia expressar os
seus tons como antes. Cansado e abatido, o velho cego parecia se entregar a
própria sorte. Não enxergava seu antigo companheiro, seu chapéu, outrora cheio
de bugigangas, encontrava-se vazio, assim como sua alma. Chorava a saudade de
Matilde, a angústia de Nicolau, as dúvidas alheias compartilhadas por todo esse
tempo. Exalava as flores por ali passadas, o suor por vezes ali pingado, os
xingamentos dos cidadãos solitários, a uréia dos moribundos e o
hálito doce e infiel das prostitutas. A Lapa saudava o velho cego, deixando-o
sóbrio, pronto para mais uma canção. Mas suas forças estavam perdidas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Uma moça que passava naquela tarde, com seus longos cabelos
encaracolados, claros como o Sol, brilhantes como a Lua, pegou o chapéu de
Jaime, bateu contra sua roupa, como se tirasse alguma sujeira, e colocou em sua
cabeça. Sorriu para o velho cego e beijou sua testa. Tirou de sua bolsa uma
pequena máscara quebrada e cobriu o rosto de Jaime. </span><br />
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Um senhor que vestia um
sobretudo, bem aquém das expectativas da bela moça, parou no outro lado da rua e, percebendo que Jaime o vira, sentou numa cadeira de bar vazia, esperando que a
moça o visse, como se implorasse pelo seu olhar, por um beijo. Jaime se escorou
em sua quebrada mesa, levantando-se, entoando uma nova canção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> A máscara não impedia que Jaime visse o senhor do outro
lado da rua. Sua fronte denunciava os cânticos da nova estação, trazendo as
flores ainda perfumadas, ainda não inaladas pelos amantes. As pétalas que caíam
a sua frente formavam o buquê de sua noiva, presa, desaparecida. Jaime
percebera a angústia no coração daquele homem e entoava com força cada nota de
sua canção. Um grupo de homens e mulheres desciam a Rua dos Inválidos como
apoio ao velho cego e, com flautas e outros instrumentos, pararam em frente à sua
barraca. A bela moça dançava com os pombos que pousavam na calçada, o senhor
angustiado chorava a solidão. A máscara de Jaime reluzia o brilho daquela tarde,
como se quisesse se despedir de algo, como se pressentisse o pior.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Clarins e bumbos, violino e flautas. A Rua dos Inválidos acompanhava
o maior concerto que o velho jamais imaginara em participar. A moça olhava com
piedade, ajeitando-lhe o chapéu, acariciando sua crespa face, secando sua tez.
O senhor clamava em silêncio o seu amor, conformando-se com a escuridão do
momento. Receando pelo seu fim solitário, buscava a luz na máscara quebrada do
velho cego. Estimava compaixão, apreço, piedade. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Jaime deu sinais de cansaço quando os primeiros pingos
caíram em sua testa. A chuva afastava os pequenos animais e aproximava ainda
mais a bela moça do velho cego. Aos poucos, apenas o violino de Jaime era
ouvido. Os outros instrumentos eram consumidos pela fina chuva que caía àquela
hora. A Rua dos Inválidos em poucos minutos ficou deserta e apenas o senhor,
Jaime e a bela moça permaneciam, como se participassem de um duelo final. A
chuva tomava os cantos da rua, não sendo mais possível perceber a diferença
entre a calçada e o asfalto. A água barrenta invadia os sapatos sujos de Jaime,
esmorecia o seu sorriso, como se estivesse satisfeito com tudo o que fizera.
Olhou para o céu cinza, carregado, deixando que as gotas limpassem a sua
estranha máscara. Guardou seu violino e pegou a mão da bela moça. Por alguns instantes,
dançou com ela, ao som da música que saía de seu instinto e que só os dois
podiam ouvir. Como se nascesse de novo,
Jaime entregou a mão da moça ao senhor no outro lado da rua e sentiu os fortes
raios de calor entrarem em sua alma. Voltou à sua barraca, com suas roupas
encharcadas. Viu o casal descendo a rua de mãos dadas, feliz. Libertou-se Jaime
de seus fantasmas, de seus medos, deixando cair por sobre seus pés a sua
máscara. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Olhou
para o céu e viu o Sol brilhar. Percebera que seu cansaço não era definitivo.
Era só passageiro. </span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">(<i>Continua...</i>) <o:p></o:p></span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-68078041938900229972012-10-05T13:24:00.004-07:002012-10-06T18:59:51.294-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 8<br />
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b>La Campanella</b></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><b>Por Heder Leite</b></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> A expressão de terror, angústia e desespero é uma realidade
naqueles que transitam a Rua dos Inválidos. As constantes cheias, os manifestos
improdutivos, a gritaria que silencia em nada, o choro das crianças perdidas, o
hálito de boldo das prostitutas da Lapa. Tudo em sua mente, Jaime sente cada
etapa dessas intempéries, cada odor e cada som que vêm não sabe ele de onde.
Apenas sente. Mesmo debaixo de um escaldante sol, sem molhar a esmo sua tórrida
faringe, o velho se levanta e deixa vir em sua tez os raios que a fazem escura
e cintilante. Passa um pano sujo em seu bornal, espera que o alimentem até o
final do dia e inicia uma nova canção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Um senhor branco, bem alto e meio desengonçado para em
frente à barraca de Jaime. Está a admirar o seu ainda baixo cântico, não
sabendo ainda discernir a tonalidade, apesar de suas grandes orelhas. Jaime
percebera que além de suas orelhas grandes e disformes, aquele senhor possuía
um nariz desproporcional, suas narinas abertas consumiam boa parte do bom e do
mau odor que a Rua dos Inválidos proporcionava. Encarava o velho cego abrindo
ainda mais suas narinas, como se aspirasse alguma coisa de sua barraca. Talvez
um alimento perdido, uma fruta ainda comestível, uma bebida que lhe fosse à
mente, talvez a destruindo, ou simplesmente a alimentando. O senhor alto de
orelhas e nariz grandes brindava a nova canção com os transeuntes, com um olhar
medonho, com sobrancelhas levantadas e olhos apenas entreabertos, como se
quisesse investigar ou descobrir algo. Jaime pouco sentira medo em sua vida,
apesar das noites isolado no hospício, das tardes frias de julho, dos viadutos
de sua cidade, das macas geladas dos hospitais por onde passou. Jaime sentira
um certo medo daquele senhor. Mas continuava a tocar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Percebera que seu olhar não passara pela Igreja Santo Antônio
dos Pobres. Era como se tivesse um pacto. Sua barba cortada antes do queixo,
modelando um desenho da costeleta a sua bochecha, se contrapunha ao seu
esvoaçante cabelo. Era inquieto, meio crespo e liso. Jaime tentava não entender
sua mente; tentava não acariciar o olhar daquele senhor. Mas já o fitava querendo
mais, querendo decifrar o que aquela mente dizia, ou pelo menos diria se
quisesse. Aquele senhor, de barba desenhada, cabelos longos e esvoaçantes,
desengonçado por sua altura, de olhos diabólicos, narinas e orelhas gigantes,
fitava o velho cego e parecia exigir do seu melhor, exigir as melhores notas, o
melhor concerto, a melhor canção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Suas mãos mostravam longos dedos, os maiores que o cego
jamais vira. Jaime completava sua efêmera descrição do que considerava o ser
humano mais feio e horrendo que possa ter visto. Se não fosse o próprio diabo,
aquele homem estaria bem próximo daquele título. Jaime podia perceber sua
atração pelo mal, seus dias libertinos, seus prazeres noturnos. Era senhor de
vida desregrada, talvez boêmio, talvez doente. Não o tinha visto pelos bares da
Lapa ainda e sua presença seria facilmente percebida. Jaime sabia que aquele
senhor era estrangeiro, não frequentava a Rua dos Inválidos. O senhor ouvia
atentamente a canção de Jaime, permitindo que o velho cego decifrasse seus
desejos e suas virtudes, além, de um pouco de suas maledicências.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Queria brindar seus últimos dias de vida passando por
aquelas ruas. Queria desfrutar dos prazeres das ruas do Senado, do Rezende, antes
de parar na rua de Jaime, na rua de todos os inválidos. Queria se encontrar com
seu amigo de hospício, que não pudera compartilhar bons momentos por entraves
da vida cotidiana dos loucos. Tentava encobrir-lhe os olhos, não deixando Jaime
ver quem abrira a porta da frente do Hospital Psiquiátrico de onde Jaime
fugira. Aquelas mãos longas puderam abrir a maçaneta e mudar o destino do velho
cego. Sofrera por anos naquele lugar, sendo tratado por vezes como um monstro,
por vezes como um inválido desengonçado e feio. Trouxe consigo o ódio e a
blasfêmia, além da solidão que a Reforma Psiquiátrica lhe deu. Não encontrou em
sua família o abrigo necessário, perambulou a procura de algum amigo, fez
maldades nas ruas, brindou o sangue alheio, machucou o próprio coração. Em sua
mente, porém, Jaime se enxerga e consegue estimar carinho e amor, escondidos no
coração daquele horrendo homem. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> O senhor gigante parecia satisfeito pela canção que acabara
de ouvir; tentava deambular, mas, com suas longas pernas, tropeçava em si
mesmo. Alguns metros a frente, olhou para o velho cego e parecia querer se
despedir. Como da última vez que o vira, fechou os portões a sete chaves e seguiu
só em direção aos Arcos, onde jazem parte de seus pulmões, já consumidos pela
tuberculose que o mata dia após dia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Percebendo que seu bornal fora preenchido, Jaime sentou para
comer, logo após terminar sua canção. E lembrou de um certo Nicolau, o monstro
do Hospital Psiquiátrico, que diziam ter as chaves da liberdade. Jaime guardara
essa lenda em sua mente, contada pelos médicos e enfermeiros daquele lugar.
Diziam que aquela era a verdadeira porta do inferno, que só podia ser aberta
por um guardião como Nicolau. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Jaime nunca acreditou nessa lenda. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">(<i>Continua...</i>)</span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-77205763622416527492012-08-18T20:12:00.002-07:002012-08-18T20:23:58.164-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 7<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><b>La sposa della notte</b></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: Trebuchet MS, sans-serif;"><b>Por Heder Leite</b></span></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
</div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Por algum tempo, Jaime trabalhou bem próximo à esquina com a
Rua da Relação. Ali conheceu o vulto dos anciãos, o apito dos pássaros, o
alvoroço das crianças perdidas, a matriz de suas paixões. Permaneceu ali
enquanto pôde. Por várias vezes, sentiu a umidade em suas coxas, o frio em seus
tornozelos. Sempre que chovia um pouco mais, a Rua dos Inválidos alagava. E a
mente de Jaime encharcava com seus sonhos, mergulhados em algum ponto do
passado ainda vil, ainda lúcido, ainda vivo. Achou o velho cego que estava na
hora de mudar de lugar; pegou seu chapéu furado, seguiu o andar mórbido de sua
própria sombra e acolheu-se ao lado da Igreja Santo Antônio dos Pobres.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Era sábado. A Rua dos Inválidos tinha um movimento incomum
naquela noite. Jaime percebia as luzes de faróis, o barulho de vozes excitadas,
ansiosas, alegres. O destino daquelas vozes era a Igreja. Não sabia dizer se se
tratava de uma reunião, uma missa fora de hora. Garoava àquela hora e algumas
pessoas corriam para dentro da paróquia. Algumas buzinas incomodavam os
transeuntes; alguns moradores se chegavam às janelas; uns jovens angariavam uma
vaga de cuidadores de carros, outros se acolhiam nos cantos da rua como
curiosos, sem o quê fazer. Alguns se atiravam no meio dos outros com intenção
maquiavélica, de tirar o que os outros não tinham, talvez a dignidade, o que
Jaime não conhecia em sua pele, em sua longa sensação de fome e angústia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Naquela noite, um casamento movimentava a Rua dos Inválidos.
Jaime ressoava sua leve e doce mente a momentos longínquos, sem saber o que
sentir, sem tirar de sua mente o que realmente lhe enchia naquele instante. O
véu da noiva balançava em sua linha de visão, podia perceber o suor e leveza da
pele da bela moça, pele escaldante, alva, contrastando com seus fortes cabelos
presos a arames invisíveis. Jaime entoou uma nova canção, num novo ponto da
rua, ao lado da Igreja, bem perto dos pobres.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> A noiva, ao sair do carro, viu o velho cego acertando as
cordas de seu instrumento; percebeu que a olhava com a fronte abaixo de sua
linha de visão, como se tivesse medo do horizonte, do que viria, do que
aconteceu. A noiva pediu um tempo, sentou-se a beira do carro e, a despeito dos
pedidos alheios que entrasse na Igreja, pediu um guarda-chuva e observou o
cântico de Jaime.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> Não queria lembrar de seus erros e suas mentiras; sentia a
bateria de sua vida a poucos metros dali, a poucas palavras, resumida a um
simples sim ou um simples piscar de olhos. A noiva transparecia em sua alva tez
uma fuga jamais sentida, queria promessas, histórias pra contar. Queria voar,
queria viver, queria saber o que fazia ali naquela hora. O cântico invadia sua
alma, entendia o seu erro, trazia-lhe honras, salvas; seus olhos denunciavam a
desigualdade deflagrada de seu coração. Trazia uma noiva a si, derramava em seu
vestido acinzentado o óleo da tristeza e a angústia da solidão. Sabia que era
hora de se libertar, de se prender, de pular, de cair, de se gostar e de odiar.
A noiva sabia. Jaime também.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> A chuva não limitava o velho cego, que tocava cada vez mais
forte, confundia o seu futuro com seu presente amargo e duvidoso. A noiva
chorava a chuva em sua fronte, trazia o início para o fim e não conseguia
enxergar o que via, de verdade. O que existia em sua mente transbordava na
invisibilidade alheia, fazendo crer que sua fé se tornava perigosa, mas ainda
sã. A chuva trazia um ar seco, as lembranças jamais esquecidas, os amores
jamais amados, o desejo jamais realizado. A noiva queria o bem; Jaime achava
que tocara bem, mas o dito repetido é mais forte, é o que marca, é o que fica.
É o que mesmo debaixo de chuva se mantém seco, como o colo dos pais, dos
amantes, dos corações puros. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"> A noite repelia a insegurança; fazia forte o fraco, alto o
baixo. O amor transbordava os absurdos, o medo, a malícia. Jaime confundia as
mentes sãs e sábias daquela noite; a noiva atrasava o cerimonial. Eles se
olhavam durante a canção que alimentava os ouvidos mais atentos da calçada;
acordavam casas ao redor; mentiam para os santos que os observava; adoeciam as
crianças mal alimentadas, debruçadas sob seu nariz; dormiam sob suas mentes
enganadas e suadas. Jaime percebia nos lindos olhos castanhos escuros da noiva,
combinados com a tonalidade de seus cabelos, uma louca vontade de amar e ser
amada. Viu a noiva levantar-se, ao seu tempo; enxugar uma gota de lágrima
barrenta em sua face, olhar a Lua por longos dois ou três segundos e seguir para a entrada da Igreja. Antes de entrar, porém, uma tórrida
tempestade caiu sobre a Igreja Santo Antônio dos Pobres. Jaime se escondeu na
Rua dos Inválidos, em algum canto onde pudesse encolher seu violino e descansar
até Sol voltar. Não pôde ouvir o sim da noiva, tampouco experimentar do arroz
do matrimônio.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Os
espelhos se quebraram e Jaime não enxergou o reflexo da sua noiva naquela noite,
que agora canta em Fá ou Só em sua pobre e cega mente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">(<i>Continua...</i>)</span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-34613874878029186192012-07-05T06:14:00.003-07:002012-07-05T06:38:08.689-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 6<br />
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Sueños de Verano</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Por Heder Leite</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Semanas
antes do Natal, Jaime presenciou uma pequena manifestação naquela rua. Podia
ouvir vozes conhecidas, soma de gritos e xingamentos, gargalhadas sobre o nada.
Não entendia bem o motivo, mas sabia que uma obra da prefeitura não agradava a
alguns de seus vizinhos. Sua barraca continuava intacta, a despeito do
movimento aumentado naqueles dias. Operários transitavam com seus capacetes
sujos de cimento, as roupas pesadas, sem saber se os protegiam dos perigos das
obras ou se aceleravam a sua morte com o calor intenso que produzia. O verão na
Rua dos Inválidos queima, ferve os sentimentos, aquece o âmago de Jaime. Para
espantar o intenso suor, o velho cego afina seu instrumento e toca sem cessar,
produzindo uma brisa suave em si, secando as gotas do trabalho, enxugando as
lágrimas de sua dor presente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Enquanto
alguns manifestantes passavam pela sua barraca, Jaime entoava com sua cabeça
baixa e olhos fechados uma de suas canções da estação. Era responsável pelo
único vento que aquela rua tinha naquela manhã. Percebia os vultos de placas,
dos pés, dos braços erguidos, dos gritos sem nexo e frases fabricadas. No íntimo
de sua loucura, entendia a ineficiência daquele ato e se conformava com o
barulho, com o calor, com a poeira levantada que o sujava a cada manhã. Um jovem,
de pele morena, retirou seu capacete, enxugou o suor de sua face, sentou na
calçada, arregaçou um pedaço de suas mangas e abriu uma garrafa de água. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Com
barba rala, o jovem operário tinham músculos definidos, era alto e um olhar
profundo. Parecia enxergar além daquela rua, além do que sua mente pudesse
alcançar. Era um olhar cansado e ao mesmo tempo esperançoso, um olhar pronto
para a manhã que se inicia, para a noite de alegrias e desafogo. Um olhar ora
ansioso, ora conformado. O operário fazia companhia ao velho cego no seu curto
período de descanso, querendo abstrair os gritos de loucura, o silencio de sua
mente que tanto o enlouquece.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">O cântico
invadia as suas entranhas, levando-o a lugares que sonhava desde sua infância.
Sentado naquela calçada, o jovem operário podia entrar nos grandes campos de
futebol, poderia ser um grande goleiro ou artilheiro. Sentia o cheiro do seu
consultório dentário, a leveza de suas gravatas e o peso de sua toga. Entre um
gole e outro, o alisar de Jaime nas cordas de seu violino. Entre um tom e
outro, os vários sonhos do operário.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Jaime
enxergava os vultos do operário, bebia de sua água, com gosto amargo da
solidão. Da ausência de seu pai, o grande sonho de sua recente juventude. Não
entendia a ausência, apenas sentia em seu olhar aquela carência, da figura
paterna de sua infância, das palmadas de exemplo que faltaram, dos carinhos
matutinos, das palavras ternas, dos braços nos ombros. Jaime entoava mais forte
e mais manso e o que saia dos olhos do operário o informava de toda sua
carência, sua lágrima se fundia ao inevitável suor de verão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Jaime
ainda não percebera se a mente do operário era tão forte quanto os seus braços.
Tentava decifrar enquanto o seu olhar profundo falava mentiras e verdades do
seu passado e presente. Enxergava as lágrimas da dor, as dores do dia e da
noite. Falavam por si as emoções fraternais que outrora teve. A perda de uma
parte que foi um todo em sua história, o todo que faz falta em suas manhãs,
suas tardes, em sua vida. Jaime sabia que sua mente era mais forte que seus braços.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">A
despeito de suas emoções, das placas infundadas e manifestos, esmagou a garrafa
já vazia, colocou-a no chapéu do velho cego, vestiu seu capacete levantou-se.
Armou-se com sua marreta, andou até o final da rua, atravessando pessoas de
bem, pessoas usadas, idosos, crianças, jovens. Olhou para trás, viu o velho
cego observando sua garrafa amassada e marretou suas memórias e sonhos contra
uma velha parede.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">O
sol daquela manhã estava forte. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">O de
Jaime, porém, era menor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">(<i>Continua...</i>)</span></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-14366339265962175432012-07-04T06:45:00.003-07:002012-07-04T08:04:03.641-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 5<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="background-color: white;"><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Il latte di Hera</span></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="background-color: white;"><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Por Heder Leite</span></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Levantou, secou sua fronte suada
e iniciou uma nova canção. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Naquela tarde de outubro, Jaime não queria ver ninguém, não
queria se apaixonar, sentir o gosto doce e amargo das flores, envenenado com o
calor da estação, com o perfume outrora lamentado, sentido, consumido. Jaime
queria apenas que sua doce lembrança o levasse de volta a Matilde, uma amiga,
com quem compartilhou agradáveis e estonteantes dias de sua juventude. Matilde
mora em seu coração, em sua mente corroída, em sua lápide, deveras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Um carrinho de flores passa pela Rua dos Inválidos, levando
o perfume de suas memórias; são rosas, margaridas, lírios, orquídeas e
violetas. O velho que as vende não as consome, as levam para jovens
apaixonados, a amantes perdidos, a apreciadores curiosos, às varandas alheias,
aos vasos antes vazios e às casas que exalam seus aromas. Matilde gostava de
lírios, os mesmos que cantavam aos seus ouvidos naquelas tenras tardes ao lado
de Jaime. O velho floricultor parou na barraca de Jaime, encostou seu carrinho
e ouviu a canção que saía do violino do cego.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Jaime alisava as cordas de seu instrumento como os lisos
cabelos de Matilde, cortados ao meio, um pouco acima de seus ombros, bem
escuros, um misto de indígena e oriental. Exalava o mais puro perfume das
rosas, e as narinas do velho cego deleitavam-se com a brisa de suas palavras.
Entoava mansamente o som de sua juventude, enquanto acariciava os finos cabelos
da linda primavera do Oriente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> O corpo do violino era Matilde em seus braços, despida de
suas diferenças, de suas lamentações, exalando os lírios de sua paixão, fitando
seu olhar com a pura seiva das flores da estação. Hera a alimentava em seu
colo, vestia-a com o manto materno, entoando a eternidade de seu amor. Os olhos
de Matilde enxergavam a cegueira do velho e a curava com o seu veneno;
destilava seu odor jamais sentido, retirava da salgada tez o infinito, o puro,
o amor. O olhar de Matilde cicatrizava as feridas ainda inexistentes de Jaime,
guardados em segredos em sua mente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> A voz de Matilde saía de seu corpo, com o acariciar de seus
cabelos e o apertar de sua alma. O floricultor se admirava com a mansidão;
pétalas voavam pela rua, perfumando os cantos de ureia, de suco gástrico das
noites perdidas, da alcóolica percepção dos olhares vazios. Sua voz entoava a
alegria de Jaime, florescia a sua mente em êxtase e fazia pousar em seus ombros
a alegria, um dia percebida. De sua boca saía o leite de Hera, dourado como o
crepúsculo, doce como a brisa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Os lábios de Matilde foram dados a Afrodite, rosados e
puros, doces e tenros. Entreabertos, chamavam por Jaime todo o amanhecer e
bebiam de seu amor a cada despedida. As rosas do floricultor não exalavam o
mesmo perfume dos lábios de Matilde. Os lábios de Matilde foram roubados, foram
perdidos pelos ventos da maturidade. Afrodite os consumiu sem piedade e fez
maltratar o coração de Jaime.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Em
sua memória, vivem o corpo de Matilde, seu veneno, seus finos cabelos
orientais, sua boca entreaberta a lhe chamar. O beijo de Matilde brotava lírios
na mente de Jaime, ao seu redor, em seu espírito. Da mesma fonte que alimentava
Hércules, caíam gotas que saciavam a paixão do velho cego.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> O floricultor olhou o relógio, o tempo havia passado. Era
preciso vender os perfumes, enfeitar as janelas, os amantes haviam de se
perdoar, se amar. Pegou seu carrinho e desceu a Rua dos Inválidos oferecendo suas
rosas, as flores do campo, margaridas. Antes, deixou um Lírio rosáceo no chapéu
de Jaime, alegre como a primavera, doce como os lábios de Matilde, suave como
seus cabelos orientais. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">A
Rua dos Inválidos nunca ouviu cântico tão vibrante e perfumado quanto naquela
tarde. <o:p></o:p></span><br />
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Em mi maior.</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">(<i>Continua...</i>)</span></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-3077419520056170972012-07-01T07:13:00.000-07:002012-07-02T16:57:48.879-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 4<br />
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> U</span><span style="background-color: white;"><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">n Sorriso in Autunno</span></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="background-color: white;"><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Por Heder Leite</span></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="background-color: white;"><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> E quando as folhas caem, Jaime sabe que suas cicatrizes são apenas marcas de uma antiga face, de uma antiga pele, antigo olhar, antigo pensar. O vento seco lhe enxuga as escaldantes e sofridas mãos; maltratam sua garganta, arranhada desde outrora. Empoeira suas lentes, embaça vitrines, carrega a chuva. As folhas e o vento seco encobrem o sorriso de Jaime, nas tardes sem gosto da Rua dos Inválidos. As escassas árvores se despem nessa época de sonho e imaginação. Levam alegria, trazem esperança, às vezes dor, às vezes fome. Jaime acompanha o voo lento de algumas folhas e imagina o que elas levam consigo; vê que não voam sozinhas e que sempre caem separadas. Jaime observa o vulto do outono, esconde a carapaça, deflagra suas manchas.</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Uma moça, vestida com uma blusa azul, desenhada com flores, coloridas como a sua mocidade, para em frente ao velho cego. Por sobre seu pé esquerdo, recai uma seca folha, bem diferente da estampa reluzente de seu vestuário. Veio de uma árvore que ainda vive naquela rua, pouco depois da Igreja. Passou por bêbados, ambulantes, reboques, lixeiras. Escolheu o pé daquela moça, bem vestida, de pele alva, temente ao Sol, de rosto alegre e confuso, ao mesmo tempo refletindo mistério e um tom de medo. A moça era alta, seus cabelos escurecidos; olhava Jaime de cima, sem altivez.</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Sua pele refletia um amor diferente, que outrora amada, possuída; agora escondida numa espécie de pedra mármore, como se precisasse de certa proteção. A moça de blusa azul florida deixava seus cabelos esvoaçantes dizerem o que queria; seu olhar não falava e escondia algo alegre, triste, gritante e mudo. Os vultos do outono confundiam a mente de Jaime, que não conseguia enxergar as flores na blusa da jovem moça; as folhas secas voavam em sua imaginação e invadiam a estampa da menina. Jaime pegou seu violino, espalhou a poeira, levantou e iniciou um novo cântico. </span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Em fá maior, entoou com precisão e harmonia o que se propôs a tocar naquela tarde. O vento tentava atrapalhar o velho cego, mas não era capaz de retirar dele as notas, a vibração, a sua vontade. Enquanto um grupo de folhas secas repousava ao seu redor, percebia no olhar profundo da jovem moça uma alegria escondida, revelando sua alegre infância, sua duvidosa adolescência, seu primeiro amor não correspondido, sua primeira deselegância, os primeiros sinais da idade adulta. Um breve sorrisinho revelava uma doce e meiga alma, apesar do ressecamento de seu espírito. Jaime tentava decifrar o motivo, mas suas bochechas escondiam a outra parte do sorriso. As folhas secas, agora, pareciam cobrir a moça e a ressecava mais ainda. O vento, como leva a chuva e as folhas, levava o som de Jaime até o final da rua, levando as dúvidas e as certezas da mente da bela moça. Alguns pássaros pousavam em seus ombros, beliscando algumas folhas, cuspindo emoções, retirando a dor, acariciando sua alma, revelando a segunda parte do sorriso. </span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Jaime sorriu.</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Viu a moça descer a Rua dos Inválidos alegre, pulando como uma criança, com a mente livre e liberta pelo carinho dos pássaros. As folhas ficavam pelo caminho, reunindo-se ao redor de outros transeuntes, carentes do olhar de Jaime, carentes dos bicos de alguns pássaros.</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">(<i>Continua...</i>)</span></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-27149991278915158192012-06-26T11:17:00.003-07:002012-07-02T16:58:04.181-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 3<br />
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Il Freddo dell'inverno</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Por Heder Leite</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">O
frio consome os mais fracos e injustiçados. Recai sobre os ombros castigados
pela dor, pelo amor, pela esperança infundada. O frio queima a alma, arde às
juntas, escaldeia a pele; faz sofrer a tez, maltrata as artérias e dilacera o
coração. Nos poucos dias de frio que a Rua dos Inválidos viveu, Jaime esquentou-se
com seus acordes, abraçado ao seu pequeno e cinza chapéu, esperando que o
amanhecer trouxesse um novo sol, uma nova luz e um novo calor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">O
inverno traz o cinza, leva as nuvens pra bem longe, ventilam o doce e suave
sabor do aconchego, esquecido nas tardes calorentas da Cidade. Nas tardes frias
de junho, com gotículas finas de chuva fria, Jaime espera por seus clientes,
enquanto afaga o primeiro cão que lhe faz companhia desde a véspera solitária.
As pessoas desfilam casacos encardidos, mofados. Coberturas enfeitam o
horizonte; os olhos estão desmascarados, com os óculos escondidos nas gavetas e
nos fundos das bolsas. Jaime poderia ver cara a cara, enxergar o mais íntimo do
olhar alheio, entender a dor, decifrar a paixão, a angústia, o anseio. Resolveu
levantar; resolveu tocar, apesar das gotículas, apesar do frio. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Em
movimentos repetitivos, o som de seu violino alcançava o outro lado da rua.
Seus pelos arrepiavam-se com o movimento, balançavam com o vento gelado e
tremiam diante dos vultos que se esquivavam em parar a sua frente. Um jovem de
pele clara parou na sua barraca e começou a admirar o seu canto. Pequenos movimentos
em sua cabeça denunciavam uma vontade de seguir o ritmo escaldante do inverno.
Seus olhos eram, porém baixos, e enxergavam o infinito, muito distante, sem uma
convergência exata, sem um destino traçado, sem ao menos traços. O rapaz sentia
o fundo da canção e parecia sonhar acordado, não parecia olhar diretamente para
Jaime; seu olhar era distante, baixo, ressoando de leve sua cabeça, em
movimentos rítmicos. Não vestia casaco e usava uma cobertura antiga,
acinzentada como o tempo, como o céu, como sua alma.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Jaime
continuava sua canção; sua fronte forçava o seu desejo e expressava certa dor.
O relento aproximava o rapaz do velho louco. Suas calças pareciam moderninhas,
fora da época de sua mente e de seu olhar. Seu olhar aproximava-o do passado,
de seus erros, a ponto de sentir desespero e incerteza. Jaime acreditava nisso
e continuava sua canção, apertando o violino contra o seu peito aberto e
gelado. Escutava do rapaz suas penas, suas perdas e via em seus cílios
entreabertos e embebidos com o orvalho seco um certo tom de desesperança. Jaime
podia apenas tocar sua canção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">À
luz de um feixe solar, cegando parcialmente sua limitada visão, viu o rapaz
sentando na calçada, amarrando os seus calçados com um cadarço sujo de lama.
Limpou suas mãos na própria calçada, levantou-se e seguiu rua abaixo, pouco
antes do término da canção que Jaime entoava. Não deixou nada no chapéu do
velho, apenas um longínquo olhar que lhe mostrava um futuro incerto e um
presente conturbado e triste. Como o inverno sem agasalho, o frio sem abraço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Em
fá menor, Jaime interrompia sua canção e tentava enxergar ao fundo o destino do
rapaz, perambulando a esmo pelo canto de sua rua, tropeçando nas esquinas de
sua vida, caindo e levantando. A fina chuva havia cessado; Jaime sentou a frente
de sua barraca, pegou seu velho chapéu e aqueceu o faminto cachorro que
abraçava suas pernas desde as primeiras horas do dia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Secou
seu violino, alinhou suas cordas e dormiu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: right; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">(<i>continua...</i>)</span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-52395358815153463842012-06-26T11:12:00.002-07:002012-07-05T07:20:13.355-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 2<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Chaconne</span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Por Heder Leite</span></div>
<br />
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> O que Jaime enxergava era a semente de uma mente rica em lembranças,
sonhos esquecidos, esperança abandonada, companhia solitária. Vultos se
formavam a cada semblante que se aproximava, configurando uma rela de
sentimentos escondidos, ocultos, guardados no mais íntimo de sua alma. As cores
se confundiam com o outono; as gotas de chuva apagavam o colorido em seu
cristalino. Sua lente estava arranhada, mas um pouco de luz ainda podia lhe
invadir. A luz refletia nos cantos de um prisma oco, informando-lhe do desejo
alheio, mentindo acerca de suas dores e omitindo o que realmente se via. Jaime
podia ver o que sua mente quisesse e sentisse. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> A barraca do louco velho fica entre as ruas da Relação e a
Av. Mem de Sá. Não vende nada, apenas dá. Aprendera tocar violino ainda no
hospital Psiquiátrico com um companheiro, outro paciente. Desde então, toca
algumas canções sem saber sequer os nomes, os autores, o que significam.
Aprendeu as notas e só. Sempre foi o suficiente. Por debaixo de sua mesa,
repousa um pequeno chapéu cinza, descosturado, castigado pelo tempo, refletindo
bem o seu dono. Ali, as pessoas, que param e escutam o doce e grave som
produzido pelo velho violino, colocam alguns trocados e moedas, alguns falsos,
outros que nada mais valem. Alguns o fazem por desprezo e maldade; outros
gostariam de retribuir-lhe o momento, mas não têm mais que um pedaço de papel
com dizeres de boa sorte, folhetos de agiotas, de ourives, de casas noturnas.
Jaime agradece a todos, esvazia o chapéu, encomenda a sua próxima refeição e
observa o próximo cliente, para o qual oferece outra canção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Do outro lado da rua, Jaime vê se aproximar uma jovem moça,
de cabelos longos e bem pretos. Sua pele é escaldante, reflexo do sol da tarde.
A moça já deve ter castigado sua tenra tez desde as primeiras horas do dia,
fato denunciado pelas manchas em sua camisa branca e um pouco transparente. As
mangas amassadas indicavam que carregava uma bolsa, que decerto estava cheia. A
moça parecia cansada e demonstrava interesse pelo cântico que Jaime entoava, em
Ré menor, harmonicamente chamando sua atenção, ocluindo os olhos nos compassos
e mexendo o seu corpo de tempo em tempo. Reluzia de seus olhos uma forte luz
castanha, uma esclera limpa, cheia de esperança. Jaime acariciava seu violino
como se estivesse consumindo a bela moça.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Jaime via em sua pupila contraída que a moça era amorosa e
densa. Bastaram alguns minutos de descanso e sua pele já reluzia um brilho
incomum. Seu olhar longínquo indicava que sabia de seu destino, cruzava bem o
seu objetivo e seus obstáculos. Tinha uma força meiga, capaz de destruir
qualquer plano contrário. Seus cabelos balançavam com o vento e Jaime podia
sentir o suave odor de sua fragrância; a moça demonstrava altivez e decisão. A
suavidade de sua pele era sentida nas cordas de seu violino, seus cabelos
reproduziam um som repetido, que Jaime tinha certeza de já ter visto antes. A
moça brilhava à sua frente, pele reluzente, longos fios negros, altura mediana,
traduzindo o som de suas angústias em tom maior.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Tinha certeza de que estava atrás de seu grande amor e que
deveras não o encontraria ali, na Rua dos Inválidos. Mas deve ter passado pela
rua após visita na velha Igreja local. Sua bolsa deve ter ficado com alguma
amiga que viria logo atrás para irem embora. Parecia estar planejando alguma
saída, talvez uma noite nos bares da Lapa ou uma tarde de fotos em Petrópolis.
A moça não parecia decidida quanto a isso. Desenhava seus longos e finos fios
sobre os ombros e abaixava o olhar, confirmando toda a sua impressão. Ao som
dos últimos acordes, a moça baixa uma nota de Real e dá as costas. Jaime entoa
o fim de sua canção, certo de suas notas, certo do que viu.<o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Sebastiana, uma senhora de 89 anos, teve uma tarde feliz na
Rua dos Inválidos. Seguiu em direção à Praça Tiradentes, onde pegou seu ônibus
e voltou satisfeita para sua casa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Mas
antes, prendeu seus longos cabelos com uma fita, que tinha guardada em sua
bolsa. <o:p></o:p></span><br />
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span><br />
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">(<i>Continua...</i>)</span></div>
</div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8585345468102336470.post-5852052490847193872012-06-26T11:09:00.000-07:002012-07-02T16:58:23.365-07:00Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 1<div class="Standard" style="text-align: center;">
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">O Arco-íris Tem Sete Cores</span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;">Por Heder Leite</span></div>
<div style="text-align: -webkit-auto;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="background-color: white; font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif; text-align: justify;"> Jaime trabalha na rua, debaixo de sol ou de chuva; sente o
cheiro das escórias, do absinto camuflado de gravatas, da baunilha derretida
das crianças, do chocolate ressecado dos adolescentes, da impura fumaça
opiácea, piscodélica, que adentra suas narinas sem pedir, que sai quando quer,
e volta sem ser chamada. Seu alívio vem em dia de chuva, trazendo consigo o
seco e suave odor de areia, capaz de levar por algum tempo o odor pútrido das
entranhas de outrem. As ruínas das velhas casas revelam um passado abandonado.
O piso descontínuo combina com os muros incompletos. Os transeuntes apressados
opõem-se aos vagabundos solitários. A barraca de Jaime descansa bem na metade
da rua; um ponto invejável.</span></div>
</div>
</div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Havia uns dez anos que Jaime chegou naquela rua. Abandonado
no início da idade adulta por loucura, fugiu do Hospital Psiquiátrico e
perambula pelas ruas desde então. Conhece bem os viadutos, os perigos do
acolhimento indevido, o clima interno das delegacias, o sabor das prostitutas e
a dor dos hematomas merecidos. A Emergência dos hospitais conheciam bem o
sujeito; já gastou nas salas de corte e costura alguns fios de nylon, reparando
cortes na face, no dorso, nas pernas. Numa última visita à emergência do Souza
Aguiar, chegou desacordado, levado pelos bombeiros militares de serviço na
Presidente Vargas. Permaneceu nos corredores do hospital por algumas semanas,
cuidado por um grupo de estudantes de medicina, ávidos pelo sentimento de
salvar vidas, programando procedimentos, prescrevendo sua sorte e negociando
com os staffs as novas condutas. Apesar de tudo, sobreviveu às condutas dos
jovens doutores. Acordou numa cadeira fria de metal, amarrado com uma faixa de
crepon, sentindo um ardor em seu braço esquerdo, de onde uma fina mangueira
plástica preenchida de soro lhe hidratava. Algumas pessoas passavam à sua
frente, sem ao menos lhe oferecer um “bom dia” ou “em que posso ajudar?”. Jaime
estava fraco, uma ferida em seu dorso lhe ardia a alma. Fraco também estava o
nó do crepon que se desfez sem trabalho. Jaime saiu pela porta da frente do
hospital, cumprimentou o guarda e voltou ao seu lar.<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Perambulou por alguns dias pelas ruas do Centro, sem saber
aonde ir. Tomava banho com a chuva de verão, secava-se com os jornais lidos.
Jaime não sabia onde estava, o que havia acontecido. Procurou por alguma
daquelas enfermeiras do Hospital Psiquiátrico, de que sentia saudades naquele
momento. Foi guiado pelo destino à sua rua final, sem metrô ou viatura, com os
dedos caleijados e a ferida cicatrizada. Seu olhar, porém, não era o mesmo. As
cores eram turvas, os reflexos dolorosos. Não diferenciava os bandidos dos
executivos quando lhe cuspiam à face. Não discernia as senhoras que lhe dava o
resto do almoço das prostitutas que lamentavam sua condição atual. O destino
sugeriu-lhe bem o seu endereço final.<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Jaime mora na Rua dos Inválidos.<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div class="Standard" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> Jaime estava cego.<o:p></o:p></span></div>
</div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/01515953266953437476noreply@blogger.com5