Saens Peña
Por Heder Leite
“O que é que desvirtua e ensina?
O que fizemos de nossas próprias vidas”
O que fizemos de nossas próprias vidas”
Manfredini, A Montanha Mágica
Gregório acorda todos os dias
bem cedo. Veste sua camiseta quadriculada, branca com azul, com o emblema de
sua empresa, a Blue Beads, uma firma especializada em contabilidade. O nome
fora sugerido por uma ex-namorada para dar um ar americanizado à empresa, como
se isso fosse atrair grandes empresários. Não funcionou muito. Seu escritório
atende basicamente alguns comerciantes do Centro e colegas de seu bairro.
Resolveu não mudar o nome da empresa porque iria gastar muito e no fundo achava
o nome diferente. Seu pai, porém, sempre achou ridículo aquele nome.
De posse de sua bolsa lateral, sua
camisa azul e branca e uma calça jeans um pouco desbotada, Gregório desce a
escadaria da Estação Saens Peña todos os dias às sete horas em ponto, com um
copo descartável na mão esquerda, cheio de café meio frio, tomando aos poucos
desde a saída de sua casa, um sobrado antigo da Desembargador Isidro. Faz
questão de comprar o bilhete pela manhã; gosta desta rotina. Assim que compra o
bilhete duplo, joga o copo com um dedo de café na lixeira e desce as escadas em
direção ao vagão. Poderia escutar uma música nesse tempo, assobiar, ler as
manchetes dos jornais. Poderia se Gregório não preferisse fazer, em pé,
palavras cruzadas, preenchendo as lacunas durante a espera do vagão. Todos os
dias era assim.
Gregório deixa as pessoas mais
alvoroçadas entrarem na frente; não busca uma cadeira, prefere ficar de pé.
Acha que pode observar melhor as pessoas que entram e saem do trem. Gosta de
perceber os imprevistos da viagem, as esquisitices matutinas, os olhares artesanais,
as faces medonhas e as roupas delinquentes. Escora-se numa das várias hastes
centrais do trem, ajeita a caneta com a boca e se prepara para mais uma página
de seu passatempo predileto. As portas se fechavam quando Gregório parou num
desafio: “desvirtuar”. Precisava de
um sinônimo, nove letras. Portas fechadas, o trem andando. Gregório examina ao
seu redor e vê uma menina, olhos claros, cabelos lisos e loiros. Tinha uns dez,
onze anos, no máximo. Encarou aqueles olhos e pensou na palavra “desvirtuar”.
Pensou nas flores de sua mocidade, nas
palavras que foram embora, nos amores não vividos. “Desvirtuar”, não tinha nada
a ver com isso. Terminava em “er”, cruzava com a palavra “cheio”. Gregório
pensava nas razões de uma criança tão jovem viajar de metrô tão cedo; não ia
para escola, nem trabalhar; era muito jovem pra isso. E também não estava de
uniforme. Vira que em seu rosto tinha uma marca, meio azulada ou violácea. A
menina tentava esconder esta marca, era notório. Gregório olhava a marca e
percebia que aquilo a incomodava. O contador fez uma cópia em sua mente daquela
marca ou mancha e fechou os olhos. Gregório pensa de olhos fechados, é assim
que faz com as letras.
“Desvirtuar”, pensava no rosto da
menina. Naquela mancha em sua bochecha, poderia ser uma doença rara, marca de
família, um câncer. Ela deveria estar indo para algum hospital, tiraria aquela
mancha com um bisturi elétrico ou coisa parecida. Ou não. Mas aonde a menina
iria tão cedo? “Desvirtuar”, nove letras, termina em “er”.
A menina poderia estar indo visitar os
primos, os tios. Poderia estar de férias, passar alguns dias com a avó. Mas isso
não desvirtua a menina nem seus entes. Gregório se lembrava de seus clientes
pedindo favores ilegais que pudessem diminuir os encargos no final do mês.
Gregório nunca aceitava, talvez por essa razão não tinha grandes empresários em
sua carteira de clientes. Não tinha nenhuma mancha em sua empresa, como aquela da
menina, violácea, azulada.
O trem para, São Francisco Xavier. Gregório
forçava a mente, não abria os olhos; assim podia ver a menina loira rindo de si
mesma, limpando o rosto com um pedaço de papel, do suco de uva que sua mãe
preparara naquela manhã. Saindo do vagão, subiu a escadaria em direção a casa
de sua amiguinha de escola; iam fazer piquenique no Alto da Boa Vista. Gregório
abriu os olhos e não viu mais a menina.
“Desvirtuar”, nove letras.
Gregório distorceu a imagem daquela princesinha. Sua mancha era singela, pura e
doce. De olhos fechados, Gregório consertou a imagem que distorceu à primeira
vista. Antes mesmo de as portas se fecharem, sua caneta completa as lacunas em
branco e escreve “distorcer”.
O vagão volta a andar.
Gregório ainda não chegou a sua
estação.
(Continua...)