Um Folclore Americano
Por Heder Leite
Jaime sorri nos cantos de sua rua como
se a sorte estivesse ao seu lado, o comando de suas ações dependesse apenas de
si. Sorri pelo sorriso alheio, espera o bom tempo, pelas cores do arco-íris que
não distingue, sorri pela sua vida, sorri pela morte, um fado tão leve quanto à
própria razão de continuar vivo. Jaime ri para esconder seu choro; seu choro
que inunda a Rua dos Inválidos, que seca sua alma, seu brilho.
Duas pessoas conversam no lado esquerdo
da rua, de quem vai em direção à Mem de Sá. Uma mulher, aparentando uns
quarenta anos e um homem, talvez um pouco mais velho. Refletem à mente de Jaime
todos os sorrisos e agrados, sua lente enxerga uma estátua quebrada e ao seu
lado o artesão, que tenta reparar-lhe algumas partes. Parece Vênus, parece de
pedra sabão, parece uma santa. Não fossem os artefatos humanos, seria posta em
alguma parte na Igreja da rua. Mas Jaime enxergava o suor, sua transpiração
parecia corroer aquela pedra, de uma forma que o artesão não conseguia acertar.
Seu suor não vinha das axilas, de suas coxas; seu suor vinha das entranhas e
escondia por completo sua forma. Aquela pedra chorava.
O artesão parecia acostumado em reparar
estátuas. Usava suas espátulas dando forma ao disforme; alisava a pedra com
lixa, cortava as arestas, pichava quando necessário e envernizava a tez com seu
tom mais brilhante. Jaime se levantou quando o calor do forte sol fez suar a
sua face. Sugeriu uma nova canção, entoando os acordes de seu violino ao seu
próprio choro, parecia querer ajudar a reparar as arestas daquela estátua.
Percebia a ferida em seu ventre; o
sangue era escuro, algo batido, parecia coagulado. O sangue escorria pelos
cantos da calçada, por onde também passavam as lágrimas do velho cego. Misturadas,
formavam um soro ralo, de angústia, ódio, tédio e medo. O artesão tentava
distinguir o que era de Jaime e o que era da estátua. Tentava descansar o
sangue da estátua, tirar-lhe o medo, seus demônios, seus fantasmas. Coava o
soro velho e batido e devolvia-lhe o que achava certo. Separou-lhes ao som que
ecoava pela Rua dos Inválidos, a mesma rua que sorriu para Jaime, que se abriu
e se fechou, que foi o início e que seria o fim. O artesão precisava dialisar
aquelas escórias, precisava devolver-lhes o que lhes eram sadios e tirar-lhes a
sombra, o incenso incomum, o choro seco, o olhar cego.
O artesão atravessava a rua e dava o
sinal de cura necessário, o reparo preciso, o alinhamento bem definido. Jaime
percebia a estátua na outra calçada com braços fortes, alimentada com o sangue
purificado, dialisado. O choro que se misturava ao sangue se confundia com o
suor, apesar de o artesão já ter certeza de que do velho cego só saíam lágrimas
de contentamento. Jaime sabia que ninguém é capaz de distinguir a diferença das
lágrimas; podem ser de dor, de tristeza, de júbilo. Por que as suas seriam de
contentamento? O tom de sua música podia decifrar isso, dar sinais e pistas.
Seu tom poderia ser distinguido pelos
vendedores ambulantes, pelo floricultor, pelas crianças quase abandonadas,
misturadas a pequenos pivetes que consomem a região. O olhar de Jaime por vezes
se fechou para essas coisas que entristeciam sua música; preferia enxergar a
bela noiva na porta da Igreja, escutar com atenção as reivindicações dos
moradores; enxergava a beleza de Matilde nas várias meninas que por ali
passavam, sua roupa em uma, seus olhos e lábios, noutras. Tentava não recordar
de seus velhos amigos, que pudessem lhe fazer sentir-se mal naquele dia.
Tentava dia após dia não mais chorar, não mais sofrer e deixar que sua mente,
que lhe acompanhou por tantos anos sem sua principal fonte de memória,
descansasse. Queria que parecesse apenas um folclore americano, desconhecido e
mudo. A Rua dos Inválidos não permitiria que Jaime fosse um folclore.
Sua canção aos poucos foi se aquietando;
a estátua na outra calçada jazia em completa forma. A ferida em seu ventre
parecia já cicatrizada e pôde, novamente, andar. O artesão guardava suas
ferramentas, secava o seu suor, limpava os instrumentos. Tinha a sensação de
dever cumprido; atravessou a rua, tirou o violino dos braços do velho cego,
puxou seu chapéu e protegeu sua face contra o sol escaldante. Esticou o corpo
de Jaime na esquina da Rua dos Inválidos e preparou-lhe uma rápida despedida.
Ao lado de seu violino, seu velho e fraco cachorro lambia suas orelhas. Com as
patas mexia nas cordas surdas do instrumento, como se fizesse um coro de
agradecimento. As pessoas choravam.
Jaime sorria para esconder a dor. Sabia
que não podia mudar o seu destino e entoava canções para alegria alheia. Não
queria que sua dor fosse transmitida como um vírus; queria abraçar a todos com
sua canção. Sabe que deve ter se enganado em muitos reflexos, mas era sua alma
que falava para uma mente que não podia mais ver. Aquela rua jamais permitiria
que Jaime fosse apenas um folclore.
A canção de Jaime ecoa pela Rua
dos Inválidos. Seus reflexos estão em suas lentes opacas, mas seu olhar
continuará brilhando nas mentes daqueles que puderam ouvir de sua canção.
Fim
Que pena q acabou!!!!!!!!!!!! Foi um lindo conto, heder!!!!
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