quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 10


Um Folclore Americano
Por Heder Leite

         Jaime sorri nos cantos de sua rua como se a sorte estivesse ao seu lado, o comando de suas ações dependesse apenas de si. Sorri pelo sorriso alheio, espera o bom tempo, pelas cores do arco-íris que não distingue, sorri pela sua vida, sorri pela morte, um fado tão leve quanto à própria razão de continuar vivo. Jaime ri para esconder seu choro; seu choro que inunda a Rua dos Inválidos, que seca sua alma, seu brilho.
         Duas pessoas conversam no lado esquerdo da rua, de quem vai em direção à Mem de Sá. Uma mulher, aparentando uns quarenta anos e um homem, talvez um pouco mais velho. Refletem à mente de Jaime todos os sorrisos e agrados, sua lente enxerga uma estátua quebrada e ao seu lado o artesão, que tenta reparar-lhe algumas partes. Parece Vênus, parece de pedra sabão, parece uma santa. Não fossem os artefatos humanos, seria posta em alguma parte na Igreja da rua. Mas Jaime enxergava o suor, sua transpiração parecia corroer aquela pedra, de uma forma que o artesão não conseguia acertar. Seu suor não vinha das axilas, de suas coxas; seu suor vinha das entranhas e escondia por completo sua forma. Aquela pedra chorava.
         O artesão parecia acostumado em reparar estátuas. Usava suas espátulas dando forma ao disforme; alisava a pedra com lixa, cortava as arestas, pichava quando necessário e envernizava a tez com seu tom mais brilhante. Jaime se levantou quando o calor do forte sol fez suar a sua face. Sugeriu uma nova canção, entoando os acordes de seu violino ao seu próprio choro, parecia querer ajudar a reparar as arestas daquela estátua.
         Percebia a ferida em seu ventre; o sangue era escuro, algo batido, parecia coagulado. O sangue escorria pelos cantos da calçada, por onde também passavam as lágrimas do velho cego. Misturadas, formavam um soro ralo, de angústia, ódio, tédio e medo. O artesão tentava distinguir o que era de Jaime e o que era da estátua. Tentava descansar o sangue da estátua, tirar-lhe o medo, seus demônios, seus fantasmas. Coava o soro velho e batido e devolvia-lhe o que achava certo. Separou-lhes ao som que ecoava pela Rua dos Inválidos, a mesma rua que sorriu para Jaime, que se abriu e se fechou, que foi o início e que seria o fim. O artesão precisava dialisar aquelas escórias, precisava devolver-lhes o que lhes eram sadios e tirar-lhes a sombra, o incenso incomum, o choro seco, o olhar cego.
         O artesão atravessava a rua e dava o sinal de cura necessário, o reparo preciso, o alinhamento bem definido. Jaime percebia a estátua na outra calçada com braços fortes, alimentada com o sangue purificado, dialisado. O choro que se misturava ao sangue se confundia com o suor, apesar de o artesão já ter certeza de que do velho cego só saíam lágrimas de contentamento. Jaime sabia que ninguém é capaz de distinguir a diferença das lágrimas; podem ser de dor, de tristeza, de júbilo. Por que as suas seriam de contentamento? O tom de sua música podia decifrar isso, dar sinais e pistas.
         Seu tom poderia ser distinguido pelos vendedores ambulantes, pelo floricultor, pelas crianças quase abandonadas, misturadas a pequenos pivetes que consomem a região. O olhar de Jaime por vezes se fechou para essas coisas que entristeciam sua música; preferia enxergar a bela noiva na porta da Igreja, escutar com atenção as reivindicações dos moradores; enxergava a beleza de Matilde nas várias meninas que por ali passavam, sua roupa em uma, seus olhos e lábios, noutras. Tentava não recordar de seus velhos amigos, que pudessem lhe fazer sentir-se mal naquele dia. Tentava dia após dia não mais chorar, não mais sofrer e deixar que sua mente, que lhe acompanhou por tantos anos sem sua principal fonte de memória, descansasse. Queria que parecesse apenas um folclore americano, desconhecido e mudo. A Rua dos Inválidos não permitiria que Jaime fosse um folclore.
         Sua canção aos poucos foi se aquietando; a estátua na outra calçada jazia em completa forma. A ferida em seu ventre parecia já cicatrizada e pôde, novamente, andar. O artesão guardava suas ferramentas, secava o seu suor, limpava os instrumentos. Tinha a sensação de dever cumprido; atravessou a rua, tirou o violino dos braços do velho cego, puxou seu chapéu e protegeu sua face contra o sol escaldante. Esticou o corpo de Jaime na esquina da Rua dos Inválidos e preparou-lhe uma rápida despedida. Ao lado de seu violino, seu velho e fraco cachorro lambia suas orelhas. Com as patas mexia nas cordas surdas do instrumento, como se fizesse um coro de agradecimento. As pessoas choravam.
         Jaime sorria para esconder a dor. Sabia que não podia mudar o seu destino e entoava canções para alegria alheia. Não queria que sua dor fosse transmitida como um vírus; queria abraçar a todos com sua canção. Sabe que deve ter se enganado em muitos reflexos, mas era sua alma que falava para uma mente que não podia mais ver. Aquela rua jamais permitiria que Jaime fosse apenas um folclore.
A canção de Jaime ecoa pela Rua dos Inválidos. Seus reflexos estão em suas lentes opacas, mas seu olhar continuará brilhando nas mentes daqueles que puderam ouvir de sua canção.

Fim

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