O Arco-íris Tem Sete Cores
Por Heder Leite
Jaime trabalha na rua, debaixo de sol ou de chuva; sente o
cheiro das escórias, do absinto camuflado de gravatas, da baunilha derretida
das crianças, do chocolate ressecado dos adolescentes, da impura fumaça
opiácea, piscodélica, que adentra suas narinas sem pedir, que sai quando quer,
e volta sem ser chamada. Seu alívio vem em dia de chuva, trazendo consigo o
seco e suave odor de areia, capaz de levar por algum tempo o odor pútrido das
entranhas de outrem. As ruínas das velhas casas revelam um passado abandonado.
O piso descontínuo combina com os muros incompletos. Os transeuntes apressados
opõem-se aos vagabundos solitários. A barraca de Jaime descansa bem na metade
da rua; um ponto invejável.
Havia uns dez anos que Jaime chegou naquela rua. Abandonado
no início da idade adulta por loucura, fugiu do Hospital Psiquiátrico e
perambula pelas ruas desde então. Conhece bem os viadutos, os perigos do
acolhimento indevido, o clima interno das delegacias, o sabor das prostitutas e
a dor dos hematomas merecidos. A Emergência dos hospitais conheciam bem o
sujeito; já gastou nas salas de corte e costura alguns fios de nylon, reparando
cortes na face, no dorso, nas pernas. Numa última visita à emergência do Souza
Aguiar, chegou desacordado, levado pelos bombeiros militares de serviço na
Presidente Vargas. Permaneceu nos corredores do hospital por algumas semanas,
cuidado por um grupo de estudantes de medicina, ávidos pelo sentimento de
salvar vidas, programando procedimentos, prescrevendo sua sorte e negociando
com os staffs as novas condutas. Apesar de tudo, sobreviveu às condutas dos
jovens doutores. Acordou numa cadeira fria de metal, amarrado com uma faixa de
crepon, sentindo um ardor em seu braço esquerdo, de onde uma fina mangueira
plástica preenchida de soro lhe hidratava. Algumas pessoas passavam à sua
frente, sem ao menos lhe oferecer um “bom dia” ou “em que posso ajudar?”. Jaime
estava fraco, uma ferida em seu dorso lhe ardia a alma. Fraco também estava o
nó do crepon que se desfez sem trabalho. Jaime saiu pela porta da frente do
hospital, cumprimentou o guarda e voltou ao seu lar.
Perambulou por alguns dias pelas ruas do Centro, sem saber
aonde ir. Tomava banho com a chuva de verão, secava-se com os jornais lidos.
Jaime não sabia onde estava, o que havia acontecido. Procurou por alguma
daquelas enfermeiras do Hospital Psiquiátrico, de que sentia saudades naquele
momento. Foi guiado pelo destino à sua rua final, sem metrô ou viatura, com os
dedos caleijados e a ferida cicatrizada. Seu olhar, porém, não era o mesmo. As
cores eram turvas, os reflexos dolorosos. Não diferenciava os bandidos dos
executivos quando lhe cuspiam à face. Não discernia as senhoras que lhe dava o
resto do almoço das prostitutas que lamentavam sua condição atual. O destino
sugeriu-lhe bem o seu endereço final.
Jaime mora na Rua dos Inválidos.
Jaime estava cego.
Oi Heder
ResponderExcluirVocê sabe, eu sempre acompanhei suas escritas e gosto delas.
Também Gostei que você tem um blog só para elas.
Fica mais fácil, parece que estou num cantinho de leitura.
Seja bem vindo!
zizi
Adorei a leitura, estarei sempre por aqui... uma abraço.
ResponderExcluirBoa noite Helder!
ResponderExcluirFiquei feliz em saber que agora tem seu blog individual para postar seus textos.
Já sou seguidora e estarei sempre por aqui.
Tenha uma semana feliz e abençoada.
Abraços da Bia!!!
http://pequenosgrandespensantes.blogspot.com.br/
Vim pela Zizi e descubro lindo texto aqui. Vou acompanhar sempre que der os demais capítulos. A provinha nesse 1º está ótima. Pouco a pouco me inteiro! abraço,chica
ResponderExcluirParabéns, gostei e estou acompanhando!
ResponderExcluir