Chaconne
Por Heder Leite
O que Jaime enxergava era a semente de uma mente rica em lembranças,
sonhos esquecidos, esperança abandonada, companhia solitária. Vultos se
formavam a cada semblante que se aproximava, configurando uma rela de
sentimentos escondidos, ocultos, guardados no mais íntimo de sua alma. As cores
se confundiam com o outono; as gotas de chuva apagavam o colorido em seu
cristalino. Sua lente estava arranhada, mas um pouco de luz ainda podia lhe
invadir. A luz refletia nos cantos de um prisma oco, informando-lhe do desejo
alheio, mentindo acerca de suas dores e omitindo o que realmente se via. Jaime
podia ver o que sua mente quisesse e sentisse.
A barraca do louco velho fica entre as ruas da Relação e a
Av. Mem de Sá. Não vende nada, apenas dá. Aprendera tocar violino ainda no
hospital Psiquiátrico com um companheiro, outro paciente. Desde então, toca
algumas canções sem saber sequer os nomes, os autores, o que significam.
Aprendeu as notas e só. Sempre foi o suficiente. Por debaixo de sua mesa,
repousa um pequeno chapéu cinza, descosturado, castigado pelo tempo, refletindo
bem o seu dono. Ali, as pessoas, que param e escutam o doce e grave som
produzido pelo velho violino, colocam alguns trocados e moedas, alguns falsos,
outros que nada mais valem. Alguns o fazem por desprezo e maldade; outros
gostariam de retribuir-lhe o momento, mas não têm mais que um pedaço de papel
com dizeres de boa sorte, folhetos de agiotas, de ourives, de casas noturnas.
Jaime agradece a todos, esvazia o chapéu, encomenda a sua próxima refeição e
observa o próximo cliente, para o qual oferece outra canção.
Do outro lado da rua, Jaime vê se aproximar uma jovem moça,
de cabelos longos e bem pretos. Sua pele é escaldante, reflexo do sol da tarde.
A moça já deve ter castigado sua tenra tez desde as primeiras horas do dia,
fato denunciado pelas manchas em sua camisa branca e um pouco transparente. As
mangas amassadas indicavam que carregava uma bolsa, que decerto estava cheia. A
moça parecia cansada e demonstrava interesse pelo cântico que Jaime entoava, em
Ré menor, harmonicamente chamando sua atenção, ocluindo os olhos nos compassos
e mexendo o seu corpo de tempo em tempo. Reluzia de seus olhos uma forte luz
castanha, uma esclera limpa, cheia de esperança. Jaime acariciava seu violino
como se estivesse consumindo a bela moça.
Jaime via em sua pupila contraída que a moça era amorosa e
densa. Bastaram alguns minutos de descanso e sua pele já reluzia um brilho
incomum. Seu olhar longínquo indicava que sabia de seu destino, cruzava bem o
seu objetivo e seus obstáculos. Tinha uma força meiga, capaz de destruir
qualquer plano contrário. Seus cabelos balançavam com o vento e Jaime podia
sentir o suave odor de sua fragrância; a moça demonstrava altivez e decisão. A
suavidade de sua pele era sentida nas cordas de seu violino, seus cabelos
reproduziam um som repetido, que Jaime tinha certeza de já ter visto antes. A
moça brilhava à sua frente, pele reluzente, longos fios negros, altura mediana,
traduzindo o som de suas angústias em tom maior.
Tinha certeza de que estava atrás de seu grande amor e que
deveras não o encontraria ali, na Rua dos Inválidos. Mas deve ter passado pela
rua após visita na velha Igreja local. Sua bolsa deve ter ficado com alguma
amiga que viria logo atrás para irem embora. Parecia estar planejando alguma
saída, talvez uma noite nos bares da Lapa ou uma tarde de fotos em Petrópolis.
A moça não parecia decidida quanto a isso. Desenhava seus longos e finos fios
sobre os ombros e abaixava o olhar, confirmando toda a sua impressão. Ao som
dos últimos acordes, a moça baixa uma nota de Real e dá as costas. Jaime entoa
o fim de sua canção, certo de suas notas, certo do que viu.
Sebastiana, uma senhora de 89 anos, teve uma tarde feliz na
Rua dos Inválidos. Seguiu em direção à Praça Tiradentes, onde pegou seu ônibus
e voltou satisfeita para sua casa.
Mas
antes, prendeu seus longos cabelos com uma fita, que tinha guardada em sua
bolsa.
(Continua...)
estou adorando acompanhar a história
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