quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

De Olhos Fechados - Parte 1



Saens Peña
Por Heder Leite
“O que é que desvirtua e ensina?
O que fizemos de nossas próprias vidas
Manfredini, A Montanha Mágica

Gregório acorda todos os dias bem cedo. Veste sua camiseta quadriculada, branca com azul, com o emblema de sua empresa, a Blue Beads, uma firma especializada em contabilidade. O nome fora sugerido por uma ex-namorada para dar um ar americanizado à empresa, como se isso fosse atrair grandes empresários. Não funcionou muito. Seu escritório atende basicamente alguns comerciantes do Centro e colegas de seu bairro. Resolveu não mudar o nome da empresa porque iria gastar muito e no fundo achava o nome diferente. Seu pai, porém, sempre achou ridículo aquele nome.
         De posse de sua bolsa lateral, sua camisa azul e branca e uma calça jeans um pouco desbotada, Gregório desce a escadaria da Estação Saens Peña todos os dias às sete horas em ponto, com um copo descartável na mão esquerda, cheio de café meio frio, tomando aos poucos desde a saída de sua casa, um sobrado antigo da Desembargador Isidro. Faz questão de comprar o bilhete pela manhã; gosta desta rotina. Assim que compra o bilhete duplo, joga o copo com um dedo de café na lixeira e desce as escadas em direção ao vagão. Poderia escutar uma música nesse tempo, assobiar, ler as manchetes dos jornais. Poderia se Gregório não preferisse fazer, em pé, palavras cruzadas, preenchendo as lacunas durante a espera do vagão. Todos os dias era assim.
         Gregório deixa as pessoas mais alvoroçadas entrarem na frente; não busca uma cadeira, prefere ficar de pé. Acha que pode observar melhor as pessoas que entram e saem do trem. Gosta de perceber os imprevistos da viagem, as esquisitices matutinas, os olhares artesanais, as faces medonhas e as roupas delinquentes. Escora-se numa das várias hastes centrais do trem, ajeita a caneta com a boca e se prepara para mais uma página de seu passatempo predileto. As portas se fechavam quando Gregório parou num desafio: “desvirtuar”. Precisava de um sinônimo, nove letras. Portas fechadas, o trem andando. Gregório examina ao seu redor e vê uma menina, olhos claros, cabelos lisos e loiros. Tinha uns dez, onze anos, no máximo. Encarou aqueles olhos e pensou na palavra “desvirtuar”.
         Pensou nas flores de sua mocidade, nas palavras que foram embora, nos amores não vividos. “Desvirtuar”, não tinha nada a ver com isso. Terminava em “er”, cruzava com a palavra “cheio”. Gregório pensava nas razões de uma criança tão jovem viajar de metrô tão cedo; não ia para escola, nem trabalhar; era muito jovem pra isso. E também não estava de uniforme. Vira que em seu rosto tinha uma marca, meio azulada ou violácea. A menina tentava esconder esta marca, era notório. Gregório olhava a marca e percebia que aquilo a incomodava. O contador fez uma cópia em sua mente daquela marca ou mancha e fechou os olhos. Gregório pensa de olhos fechados, é assim que faz com as letras.
         “Desvirtuar”, pensava no rosto da menina. Naquela mancha em sua bochecha, poderia ser uma doença rara, marca de família, um câncer. Ela deveria estar indo para algum hospital, tiraria aquela mancha com um bisturi elétrico ou coisa parecida. Ou não. Mas aonde a menina iria tão cedo? “Desvirtuar”, nove letras, termina em “er”.
         A menina poderia estar indo visitar os primos, os tios. Poderia estar de férias, passar alguns dias com a avó. Mas isso não desvirtua a menina nem seus entes. Gregório se lembrava de seus clientes pedindo favores ilegais que pudessem diminuir os encargos no final do mês. Gregório nunca aceitava, talvez por essa razão não tinha grandes empresários em sua carteira de clientes. Não tinha nenhuma mancha em sua empresa, como aquela da menina, violácea, azulada.
 O trem para, São Francisco Xavier. Gregório forçava a mente, não abria os olhos; assim podia ver a menina loira rindo de si mesma, limpando o rosto com um pedaço de papel, do suco de uva que sua mãe preparara naquela manhã. Saindo do vagão, subiu a escadaria em direção a casa de sua amiguinha de escola; iam fazer piquenique no Alto da Boa Vista. Gregório abriu os olhos e não viu mais a menina.
“Desvirtuar”, nove letras. Gregório distorceu a imagem daquela princesinha. Sua mancha era singela, pura e doce. De olhos fechados, Gregório consertou a imagem que distorceu à primeira vista. Antes mesmo de as portas se fecharem, sua caneta completa as lacunas em branco e escreve “distorcer”.
O vagão volta a andar.
Gregório ainda não chegou a sua estação.

(Continua...)

Um comentário:

  1. ARRASOU!!!!!!! Gostei mtoooooooo desse inicio!!! Vê se nao demora pra escrever os proximos capitulos...... Ficou realmente mto bom! Vlw!!

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