sábado, 6 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 9


Le Fantôme
Por Heder Leite

         A velhice era a doença de Jaime; a cegueira, a sua força. Suas canções transpassavam a Rua dos Inválidos; eram ouvidas até na Praça da República. As pessoas que se admiravam com seus cânticos levavam consigo os tons mais modestos e mais agudos para casa. Levavam as expressões, o seu suor, as suas lágrimas. Jaime deixava sua emoção aparecer, não conseguia esconder o que sentia. Seu tom era sincero, sua música o decifrava. E não deixava mágoas nem dúvidas. As pessoas levavam Jaime para casa, por completo.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não conseguia expressar os seus tons como antes. Cansado e abatido, o velho cego parecia se entregar a própria sorte. Não enxergava seu antigo companheiro, seu chapéu, outrora cheio de bugigangas, encontrava-se vazio, assim como sua alma. Chorava a saudade de Matilde, a angústia de Nicolau, as dúvidas alheias compartilhadas por todo esse tempo. Exalava as flores por ali passadas, o suor por vezes ali pingado, os xingamentos dos cidadãos solitários, a uréia dos moribundos e o hálito doce e infiel das prostitutas. A Lapa saudava o velho cego, deixando-o sóbrio, pronto para mais uma canção. Mas suas forças estavam perdidas.
         Uma moça que passava naquela tarde, com seus longos cabelos encaracolados, claros como o Sol, brilhantes como a Lua, pegou o chapéu de Jaime, bateu contra sua roupa, como se tirasse alguma sujeira, e colocou em sua cabeça. Sorriu para o velho cego e beijou sua testa. Tirou de sua bolsa uma pequena máscara quebrada e cobriu o rosto de Jaime. 
        Um senhor que vestia um sobretudo, bem aquém das expectativas da bela moça, parou no outro lado da rua e, percebendo que Jaime o vira, sentou numa cadeira de bar vazia, esperando que a moça o visse, como se implorasse pelo seu olhar, por um beijo. Jaime se escorou em sua quebrada mesa, levantando-se, entoando uma nova canção.
         A máscara não impedia que Jaime visse o senhor do outro lado da rua. Sua fronte denunciava os cânticos da nova estação, trazendo as flores ainda perfumadas, ainda não inaladas pelos amantes. As pétalas que caíam a sua frente formavam o buquê de sua noiva, presa, desaparecida. Jaime percebera a angústia no coração daquele homem e entoava com força cada nota de sua canção. Um grupo de homens e mulheres desciam a Rua dos Inválidos como apoio ao velho cego e, com flautas e outros instrumentos, pararam em frente à sua barraca. A bela moça dançava com os pombos que pousavam na calçada, o senhor angustiado chorava a solidão. A máscara de Jaime reluzia o brilho daquela tarde, como se quisesse se despedir de algo, como se pressentisse o pior.
         Clarins e bumbos, violino e flautas. A Rua dos Inválidos acompanhava o maior concerto que o velho jamais imaginara em participar. A moça olhava com piedade, ajeitando-lhe o chapéu, acariciando sua crespa face, secando sua tez. O senhor clamava em silêncio o seu amor, conformando-se com a escuridão do momento. Receando pelo seu fim solitário, buscava a luz na máscara quebrada do velho cego. Estimava compaixão, apreço, piedade.
         Jaime deu sinais de cansaço quando os primeiros pingos caíram em sua testa. A chuva afastava os pequenos animais e aproximava ainda mais a bela moça do velho cego. Aos poucos, apenas o violino de Jaime era ouvido. Os outros instrumentos eram consumidos pela fina chuva que caía àquela hora. A Rua dos Inválidos em poucos minutos ficou deserta e apenas o senhor, Jaime e a bela moça permaneciam, como se participassem de um duelo final. A chuva tomava os cantos da rua, não sendo mais possível perceber a diferença entre a calçada e o asfalto. A água barrenta invadia os sapatos sujos de Jaime, esmorecia o seu sorriso, como se estivesse satisfeito com tudo o que fizera. Olhou para o céu cinza, carregado, deixando que as gotas limpassem a sua estranha máscara. Guardou seu violino e pegou a mão da bela moça. Por alguns instantes, dançou com ela, ao som da música que saía de seu instinto e que só os dois podiam ouvir.  Como se nascesse de novo, Jaime entregou a mão da moça ao senhor no outro lado da rua e sentiu os fortes raios de calor entrarem em sua alma. Voltou à sua barraca, com suas roupas encharcadas. Viu o casal descendo a rua de mãos dadas, feliz. Libertou-se Jaime de seus fantasmas, de seus medos, deixando cair por sobre seus pés a sua máscara.
Olhou para o céu e viu o Sol brilhar. Percebera que seu cansaço não era definitivo. Era só passageiro. 

(Continua...

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 8


La Campanella
Por Heder Leite

         A expressão de terror, angústia e desespero é uma realidade naqueles que transitam a Rua dos Inválidos. As constantes cheias, os manifestos improdutivos, a gritaria que silencia em nada, o choro das crianças perdidas, o hálito de boldo das prostitutas da Lapa. Tudo em sua mente, Jaime sente cada etapa dessas intempéries, cada odor e cada som que vêm não sabe ele de onde. Apenas sente. Mesmo debaixo de um escaldante sol, sem molhar a esmo sua tórrida faringe, o velho se levanta e deixa vir em sua tez os raios que a fazem escura e cintilante. Passa um pano sujo em seu bornal, espera que o alimentem até o final do dia e inicia uma nova canção.
         Um senhor branco, bem alto e meio desengonçado para em frente à barraca de Jaime. Está a admirar o seu ainda baixo cântico, não sabendo ainda discernir a tonalidade, apesar de suas grandes orelhas. Jaime percebera que além de suas orelhas grandes e disformes, aquele senhor possuía um nariz desproporcional, suas narinas abertas consumiam boa parte do bom e do mau odor que a Rua dos Inválidos proporcionava. Encarava o velho cego abrindo ainda mais suas narinas, como se aspirasse alguma coisa de sua barraca. Talvez um alimento perdido, uma fruta ainda comestível, uma bebida que lhe fosse à mente, talvez a destruindo, ou simplesmente a alimentando. O senhor alto de orelhas e nariz grandes brindava a nova canção com os transeuntes, com um olhar medonho, com sobrancelhas levantadas e olhos apenas entreabertos, como se quisesse investigar ou descobrir algo. Jaime pouco sentira medo em sua vida, apesar das noites isolado no hospício, das tardes frias de julho, dos viadutos de sua cidade, das macas geladas dos hospitais por onde passou. Jaime sentira um certo medo daquele senhor. Mas continuava a tocar.
         Percebera que seu olhar não passara pela Igreja Santo Antônio dos Pobres. Era como se tivesse um pacto. Sua barba cortada antes do queixo, modelando um desenho da costeleta a sua bochecha, se contrapunha ao seu esvoaçante cabelo. Era inquieto, meio crespo e liso. Jaime tentava não entender sua mente; tentava não acariciar o olhar daquele senhor. Mas já o fitava querendo mais, querendo decifrar o que aquela mente dizia, ou pelo menos diria se quisesse. Aquele senhor, de barba desenhada, cabelos longos e esvoaçantes, desengonçado por sua altura, de olhos diabólicos, narinas e orelhas gigantes, fitava o velho cego e parecia exigir do seu melhor, exigir as melhores notas, o melhor concerto, a melhor canção.
         Suas mãos mostravam longos dedos, os maiores que o cego jamais vira. Jaime completava sua efêmera descrição do que considerava o ser humano mais feio e horrendo que possa ter visto. Se não fosse o próprio diabo, aquele homem estaria bem próximo daquele título. Jaime podia perceber sua atração pelo mal, seus dias libertinos, seus prazeres noturnos. Era senhor de vida desregrada, talvez boêmio, talvez doente. Não o tinha visto pelos bares da Lapa ainda e sua presença seria facilmente percebida. Jaime sabia que aquele senhor era estrangeiro, não frequentava a Rua dos Inválidos. O senhor ouvia atentamente a canção de Jaime, permitindo que o velho cego decifrasse seus desejos e suas virtudes, além, de um pouco de suas maledicências.
         Queria brindar seus últimos dias de vida passando por aquelas ruas. Queria desfrutar dos prazeres das ruas do Senado, do Rezende, antes de parar na rua de Jaime, na rua de todos os inválidos. Queria se encontrar com seu amigo de hospício, que não pudera compartilhar bons momentos por entraves da vida cotidiana dos loucos. Tentava encobrir-lhe os olhos, não deixando Jaime ver quem abrira a porta da frente do Hospital Psiquiátrico de onde Jaime fugira. Aquelas mãos longas puderam abrir a maçaneta e mudar o destino do velho cego. Sofrera por anos naquele lugar, sendo tratado por vezes como um monstro, por vezes como um inválido desengonçado e feio. Trouxe consigo o ódio e a blasfêmia, além da solidão que a Reforma Psiquiátrica lhe deu. Não encontrou em sua família o abrigo necessário, perambulou a procura de algum amigo, fez maldades nas ruas, brindou o sangue alheio, machucou o próprio coração. Em sua mente, porém, Jaime se enxerga e consegue estimar carinho e amor, escondidos no coração daquele horrendo homem.
         O senhor gigante parecia satisfeito pela canção que acabara de ouvir; tentava deambular, mas, com suas longas pernas, tropeçava em si mesmo. Alguns metros a frente, olhou para o velho cego e parecia querer se despedir. Como da última vez que o vira, fechou os portões a sete chaves e seguiu só em direção aos Arcos, onde jazem parte de seus pulmões, já consumidos pela tuberculose que o mata dia após dia.
         Percebendo que seu bornal fora preenchido, Jaime sentou para comer, logo após terminar sua canção. E lembrou de um certo Nicolau, o monstro do Hospital Psiquiátrico, que diziam ter as chaves da liberdade. Jaime guardara essa lenda em sua mente, contada pelos médicos e enfermeiros daquele lugar. Diziam que aquela era a verdadeira porta do inferno, que só podia ser aberta por um guardião como Nicolau.
         Jaime nunca acreditou nessa lenda.
         
(Continua...)