quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

De Olhos Fechados - Parte 1



Saens Peña
Por Heder Leite
“O que é que desvirtua e ensina?
O que fizemos de nossas próprias vidas
Manfredini, A Montanha Mágica

Gregório acorda todos os dias bem cedo. Veste sua camiseta quadriculada, branca com azul, com o emblema de sua empresa, a Blue Beads, uma firma especializada em contabilidade. O nome fora sugerido por uma ex-namorada para dar um ar americanizado à empresa, como se isso fosse atrair grandes empresários. Não funcionou muito. Seu escritório atende basicamente alguns comerciantes do Centro e colegas de seu bairro. Resolveu não mudar o nome da empresa porque iria gastar muito e no fundo achava o nome diferente. Seu pai, porém, sempre achou ridículo aquele nome.
         De posse de sua bolsa lateral, sua camisa azul e branca e uma calça jeans um pouco desbotada, Gregório desce a escadaria da Estação Saens Peña todos os dias às sete horas em ponto, com um copo descartável na mão esquerda, cheio de café meio frio, tomando aos poucos desde a saída de sua casa, um sobrado antigo da Desembargador Isidro. Faz questão de comprar o bilhete pela manhã; gosta desta rotina. Assim que compra o bilhete duplo, joga o copo com um dedo de café na lixeira e desce as escadas em direção ao vagão. Poderia escutar uma música nesse tempo, assobiar, ler as manchetes dos jornais. Poderia se Gregório não preferisse fazer, em pé, palavras cruzadas, preenchendo as lacunas durante a espera do vagão. Todos os dias era assim.
         Gregório deixa as pessoas mais alvoroçadas entrarem na frente; não busca uma cadeira, prefere ficar de pé. Acha que pode observar melhor as pessoas que entram e saem do trem. Gosta de perceber os imprevistos da viagem, as esquisitices matutinas, os olhares artesanais, as faces medonhas e as roupas delinquentes. Escora-se numa das várias hastes centrais do trem, ajeita a caneta com a boca e se prepara para mais uma página de seu passatempo predileto. As portas se fechavam quando Gregório parou num desafio: “desvirtuar”. Precisava de um sinônimo, nove letras. Portas fechadas, o trem andando. Gregório examina ao seu redor e vê uma menina, olhos claros, cabelos lisos e loiros. Tinha uns dez, onze anos, no máximo. Encarou aqueles olhos e pensou na palavra “desvirtuar”.
         Pensou nas flores de sua mocidade, nas palavras que foram embora, nos amores não vividos. “Desvirtuar”, não tinha nada a ver com isso. Terminava em “er”, cruzava com a palavra “cheio”. Gregório pensava nas razões de uma criança tão jovem viajar de metrô tão cedo; não ia para escola, nem trabalhar; era muito jovem pra isso. E também não estava de uniforme. Vira que em seu rosto tinha uma marca, meio azulada ou violácea. A menina tentava esconder esta marca, era notório. Gregório olhava a marca e percebia que aquilo a incomodava. O contador fez uma cópia em sua mente daquela marca ou mancha e fechou os olhos. Gregório pensa de olhos fechados, é assim que faz com as letras.
         “Desvirtuar”, pensava no rosto da menina. Naquela mancha em sua bochecha, poderia ser uma doença rara, marca de família, um câncer. Ela deveria estar indo para algum hospital, tiraria aquela mancha com um bisturi elétrico ou coisa parecida. Ou não. Mas aonde a menina iria tão cedo? “Desvirtuar”, nove letras, termina em “er”.
         A menina poderia estar indo visitar os primos, os tios. Poderia estar de férias, passar alguns dias com a avó. Mas isso não desvirtua a menina nem seus entes. Gregório se lembrava de seus clientes pedindo favores ilegais que pudessem diminuir os encargos no final do mês. Gregório nunca aceitava, talvez por essa razão não tinha grandes empresários em sua carteira de clientes. Não tinha nenhuma mancha em sua empresa, como aquela da menina, violácea, azulada.
 O trem para, São Francisco Xavier. Gregório forçava a mente, não abria os olhos; assim podia ver a menina loira rindo de si mesma, limpando o rosto com um pedaço de papel, do suco de uva que sua mãe preparara naquela manhã. Saindo do vagão, subiu a escadaria em direção a casa de sua amiguinha de escola; iam fazer piquenique no Alto da Boa Vista. Gregório abriu os olhos e não viu mais a menina.
“Desvirtuar”, nove letras. Gregório distorceu a imagem daquela princesinha. Sua mancha era singela, pura e doce. De olhos fechados, Gregório consertou a imagem que distorceu à primeira vista. Antes mesmo de as portas se fecharem, sua caneta completa as lacunas em branco e escreve “distorcer”.
O vagão volta a andar.
Gregório ainda não chegou a sua estação.

(Continua...)

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 10


Um Folclore Americano
Por Heder Leite

         Jaime sorri nos cantos de sua rua como se a sorte estivesse ao seu lado, o comando de suas ações dependesse apenas de si. Sorri pelo sorriso alheio, espera o bom tempo, pelas cores do arco-íris que não distingue, sorri pela sua vida, sorri pela morte, um fado tão leve quanto à própria razão de continuar vivo. Jaime ri para esconder seu choro; seu choro que inunda a Rua dos Inválidos, que seca sua alma, seu brilho.
         Duas pessoas conversam no lado esquerdo da rua, de quem vai em direção à Mem de Sá. Uma mulher, aparentando uns quarenta anos e um homem, talvez um pouco mais velho. Refletem à mente de Jaime todos os sorrisos e agrados, sua lente enxerga uma estátua quebrada e ao seu lado o artesão, que tenta reparar-lhe algumas partes. Parece Vênus, parece de pedra sabão, parece uma santa. Não fossem os artefatos humanos, seria posta em alguma parte na Igreja da rua. Mas Jaime enxergava o suor, sua transpiração parecia corroer aquela pedra, de uma forma que o artesão não conseguia acertar. Seu suor não vinha das axilas, de suas coxas; seu suor vinha das entranhas e escondia por completo sua forma. Aquela pedra chorava.
         O artesão parecia acostumado em reparar estátuas. Usava suas espátulas dando forma ao disforme; alisava a pedra com lixa, cortava as arestas, pichava quando necessário e envernizava a tez com seu tom mais brilhante. Jaime se levantou quando o calor do forte sol fez suar a sua face. Sugeriu uma nova canção, entoando os acordes de seu violino ao seu próprio choro, parecia querer ajudar a reparar as arestas daquela estátua.
         Percebia a ferida em seu ventre; o sangue era escuro, algo batido, parecia coagulado. O sangue escorria pelos cantos da calçada, por onde também passavam as lágrimas do velho cego. Misturadas, formavam um soro ralo, de angústia, ódio, tédio e medo. O artesão tentava distinguir o que era de Jaime e o que era da estátua. Tentava descansar o sangue da estátua, tirar-lhe o medo, seus demônios, seus fantasmas. Coava o soro velho e batido e devolvia-lhe o que achava certo. Separou-lhes ao som que ecoava pela Rua dos Inválidos, a mesma rua que sorriu para Jaime, que se abriu e se fechou, que foi o início e que seria o fim. O artesão precisava dialisar aquelas escórias, precisava devolver-lhes o que lhes eram sadios e tirar-lhes a sombra, o incenso incomum, o choro seco, o olhar cego.
         O artesão atravessava a rua e dava o sinal de cura necessário, o reparo preciso, o alinhamento bem definido. Jaime percebia a estátua na outra calçada com braços fortes, alimentada com o sangue purificado, dialisado. O choro que se misturava ao sangue se confundia com o suor, apesar de o artesão já ter certeza de que do velho cego só saíam lágrimas de contentamento. Jaime sabia que ninguém é capaz de distinguir a diferença das lágrimas; podem ser de dor, de tristeza, de júbilo. Por que as suas seriam de contentamento? O tom de sua música podia decifrar isso, dar sinais e pistas.
         Seu tom poderia ser distinguido pelos vendedores ambulantes, pelo floricultor, pelas crianças quase abandonadas, misturadas a pequenos pivetes que consomem a região. O olhar de Jaime por vezes se fechou para essas coisas que entristeciam sua música; preferia enxergar a bela noiva na porta da Igreja, escutar com atenção as reivindicações dos moradores; enxergava a beleza de Matilde nas várias meninas que por ali passavam, sua roupa em uma, seus olhos e lábios, noutras. Tentava não recordar de seus velhos amigos, que pudessem lhe fazer sentir-se mal naquele dia. Tentava dia após dia não mais chorar, não mais sofrer e deixar que sua mente, que lhe acompanhou por tantos anos sem sua principal fonte de memória, descansasse. Queria que parecesse apenas um folclore americano, desconhecido e mudo. A Rua dos Inválidos não permitiria que Jaime fosse um folclore.
         Sua canção aos poucos foi se aquietando; a estátua na outra calçada jazia em completa forma. A ferida em seu ventre parecia já cicatrizada e pôde, novamente, andar. O artesão guardava suas ferramentas, secava o seu suor, limpava os instrumentos. Tinha a sensação de dever cumprido; atravessou a rua, tirou o violino dos braços do velho cego, puxou seu chapéu e protegeu sua face contra o sol escaldante. Esticou o corpo de Jaime na esquina da Rua dos Inválidos e preparou-lhe uma rápida despedida. Ao lado de seu violino, seu velho e fraco cachorro lambia suas orelhas. Com as patas mexia nas cordas surdas do instrumento, como se fizesse um coro de agradecimento. As pessoas choravam.
         Jaime sorria para esconder a dor. Sabia que não podia mudar o seu destino e entoava canções para alegria alheia. Não queria que sua dor fosse transmitida como um vírus; queria abraçar a todos com sua canção. Sabe que deve ter se enganado em muitos reflexos, mas era sua alma que falava para uma mente que não podia mais ver. Aquela rua jamais permitiria que Jaime fosse apenas um folclore.
A canção de Jaime ecoa pela Rua dos Inválidos. Seus reflexos estão em suas lentes opacas, mas seu olhar continuará brilhando nas mentes daqueles que puderam ouvir de sua canção.

Fim

sábado, 6 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 9


Le Fantôme
Por Heder Leite

         A velhice era a doença de Jaime; a cegueira, a sua força. Suas canções transpassavam a Rua dos Inválidos; eram ouvidas até na Praça da República. As pessoas que se admiravam com seus cânticos levavam consigo os tons mais modestos e mais agudos para casa. Levavam as expressões, o seu suor, as suas lágrimas. Jaime deixava sua emoção aparecer, não conseguia esconder o que sentia. Seu tom era sincero, sua música o decifrava. E não deixava mágoas nem dúvidas. As pessoas levavam Jaime para casa, por completo.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não conseguia expressar os seus tons como antes. Cansado e abatido, o velho cego parecia se entregar a própria sorte. Não enxergava seu antigo companheiro, seu chapéu, outrora cheio de bugigangas, encontrava-se vazio, assim como sua alma. Chorava a saudade de Matilde, a angústia de Nicolau, as dúvidas alheias compartilhadas por todo esse tempo. Exalava as flores por ali passadas, o suor por vezes ali pingado, os xingamentos dos cidadãos solitários, a uréia dos moribundos e o hálito doce e infiel das prostitutas. A Lapa saudava o velho cego, deixando-o sóbrio, pronto para mais uma canção. Mas suas forças estavam perdidas.
         Uma moça que passava naquela tarde, com seus longos cabelos encaracolados, claros como o Sol, brilhantes como a Lua, pegou o chapéu de Jaime, bateu contra sua roupa, como se tirasse alguma sujeira, e colocou em sua cabeça. Sorriu para o velho cego e beijou sua testa. Tirou de sua bolsa uma pequena máscara quebrada e cobriu o rosto de Jaime. 
        Um senhor que vestia um sobretudo, bem aquém das expectativas da bela moça, parou no outro lado da rua e, percebendo que Jaime o vira, sentou numa cadeira de bar vazia, esperando que a moça o visse, como se implorasse pelo seu olhar, por um beijo. Jaime se escorou em sua quebrada mesa, levantando-se, entoando uma nova canção.
         A máscara não impedia que Jaime visse o senhor do outro lado da rua. Sua fronte denunciava os cânticos da nova estação, trazendo as flores ainda perfumadas, ainda não inaladas pelos amantes. As pétalas que caíam a sua frente formavam o buquê de sua noiva, presa, desaparecida. Jaime percebera a angústia no coração daquele homem e entoava com força cada nota de sua canção. Um grupo de homens e mulheres desciam a Rua dos Inválidos como apoio ao velho cego e, com flautas e outros instrumentos, pararam em frente à sua barraca. A bela moça dançava com os pombos que pousavam na calçada, o senhor angustiado chorava a solidão. A máscara de Jaime reluzia o brilho daquela tarde, como se quisesse se despedir de algo, como se pressentisse o pior.
         Clarins e bumbos, violino e flautas. A Rua dos Inválidos acompanhava o maior concerto que o velho jamais imaginara em participar. A moça olhava com piedade, ajeitando-lhe o chapéu, acariciando sua crespa face, secando sua tez. O senhor clamava em silêncio o seu amor, conformando-se com a escuridão do momento. Receando pelo seu fim solitário, buscava a luz na máscara quebrada do velho cego. Estimava compaixão, apreço, piedade.
         Jaime deu sinais de cansaço quando os primeiros pingos caíram em sua testa. A chuva afastava os pequenos animais e aproximava ainda mais a bela moça do velho cego. Aos poucos, apenas o violino de Jaime era ouvido. Os outros instrumentos eram consumidos pela fina chuva que caía àquela hora. A Rua dos Inválidos em poucos minutos ficou deserta e apenas o senhor, Jaime e a bela moça permaneciam, como se participassem de um duelo final. A chuva tomava os cantos da rua, não sendo mais possível perceber a diferença entre a calçada e o asfalto. A água barrenta invadia os sapatos sujos de Jaime, esmorecia o seu sorriso, como se estivesse satisfeito com tudo o que fizera. Olhou para o céu cinza, carregado, deixando que as gotas limpassem a sua estranha máscara. Guardou seu violino e pegou a mão da bela moça. Por alguns instantes, dançou com ela, ao som da música que saía de seu instinto e que só os dois podiam ouvir.  Como se nascesse de novo, Jaime entregou a mão da moça ao senhor no outro lado da rua e sentiu os fortes raios de calor entrarem em sua alma. Voltou à sua barraca, com suas roupas encharcadas. Viu o casal descendo a rua de mãos dadas, feliz. Libertou-se Jaime de seus fantasmas, de seus medos, deixando cair por sobre seus pés a sua máscara.
Olhou para o céu e viu o Sol brilhar. Percebera que seu cansaço não era definitivo. Era só passageiro. 

(Continua...

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 8


La Campanella
Por Heder Leite

         A expressão de terror, angústia e desespero é uma realidade naqueles que transitam a Rua dos Inválidos. As constantes cheias, os manifestos improdutivos, a gritaria que silencia em nada, o choro das crianças perdidas, o hálito de boldo das prostitutas da Lapa. Tudo em sua mente, Jaime sente cada etapa dessas intempéries, cada odor e cada som que vêm não sabe ele de onde. Apenas sente. Mesmo debaixo de um escaldante sol, sem molhar a esmo sua tórrida faringe, o velho se levanta e deixa vir em sua tez os raios que a fazem escura e cintilante. Passa um pano sujo em seu bornal, espera que o alimentem até o final do dia e inicia uma nova canção.
         Um senhor branco, bem alto e meio desengonçado para em frente à barraca de Jaime. Está a admirar o seu ainda baixo cântico, não sabendo ainda discernir a tonalidade, apesar de suas grandes orelhas. Jaime percebera que além de suas orelhas grandes e disformes, aquele senhor possuía um nariz desproporcional, suas narinas abertas consumiam boa parte do bom e do mau odor que a Rua dos Inválidos proporcionava. Encarava o velho cego abrindo ainda mais suas narinas, como se aspirasse alguma coisa de sua barraca. Talvez um alimento perdido, uma fruta ainda comestível, uma bebida que lhe fosse à mente, talvez a destruindo, ou simplesmente a alimentando. O senhor alto de orelhas e nariz grandes brindava a nova canção com os transeuntes, com um olhar medonho, com sobrancelhas levantadas e olhos apenas entreabertos, como se quisesse investigar ou descobrir algo. Jaime pouco sentira medo em sua vida, apesar das noites isolado no hospício, das tardes frias de julho, dos viadutos de sua cidade, das macas geladas dos hospitais por onde passou. Jaime sentira um certo medo daquele senhor. Mas continuava a tocar.
         Percebera que seu olhar não passara pela Igreja Santo Antônio dos Pobres. Era como se tivesse um pacto. Sua barba cortada antes do queixo, modelando um desenho da costeleta a sua bochecha, se contrapunha ao seu esvoaçante cabelo. Era inquieto, meio crespo e liso. Jaime tentava não entender sua mente; tentava não acariciar o olhar daquele senhor. Mas já o fitava querendo mais, querendo decifrar o que aquela mente dizia, ou pelo menos diria se quisesse. Aquele senhor, de barba desenhada, cabelos longos e esvoaçantes, desengonçado por sua altura, de olhos diabólicos, narinas e orelhas gigantes, fitava o velho cego e parecia exigir do seu melhor, exigir as melhores notas, o melhor concerto, a melhor canção.
         Suas mãos mostravam longos dedos, os maiores que o cego jamais vira. Jaime completava sua efêmera descrição do que considerava o ser humano mais feio e horrendo que possa ter visto. Se não fosse o próprio diabo, aquele homem estaria bem próximo daquele título. Jaime podia perceber sua atração pelo mal, seus dias libertinos, seus prazeres noturnos. Era senhor de vida desregrada, talvez boêmio, talvez doente. Não o tinha visto pelos bares da Lapa ainda e sua presença seria facilmente percebida. Jaime sabia que aquele senhor era estrangeiro, não frequentava a Rua dos Inválidos. O senhor ouvia atentamente a canção de Jaime, permitindo que o velho cego decifrasse seus desejos e suas virtudes, além, de um pouco de suas maledicências.
         Queria brindar seus últimos dias de vida passando por aquelas ruas. Queria desfrutar dos prazeres das ruas do Senado, do Rezende, antes de parar na rua de Jaime, na rua de todos os inválidos. Queria se encontrar com seu amigo de hospício, que não pudera compartilhar bons momentos por entraves da vida cotidiana dos loucos. Tentava encobrir-lhe os olhos, não deixando Jaime ver quem abrira a porta da frente do Hospital Psiquiátrico de onde Jaime fugira. Aquelas mãos longas puderam abrir a maçaneta e mudar o destino do velho cego. Sofrera por anos naquele lugar, sendo tratado por vezes como um monstro, por vezes como um inválido desengonçado e feio. Trouxe consigo o ódio e a blasfêmia, além da solidão que a Reforma Psiquiátrica lhe deu. Não encontrou em sua família o abrigo necessário, perambulou a procura de algum amigo, fez maldades nas ruas, brindou o sangue alheio, machucou o próprio coração. Em sua mente, porém, Jaime se enxerga e consegue estimar carinho e amor, escondidos no coração daquele horrendo homem.
         O senhor gigante parecia satisfeito pela canção que acabara de ouvir; tentava deambular, mas, com suas longas pernas, tropeçava em si mesmo. Alguns metros a frente, olhou para o velho cego e parecia querer se despedir. Como da última vez que o vira, fechou os portões a sete chaves e seguiu só em direção aos Arcos, onde jazem parte de seus pulmões, já consumidos pela tuberculose que o mata dia após dia.
         Percebendo que seu bornal fora preenchido, Jaime sentou para comer, logo após terminar sua canção. E lembrou de um certo Nicolau, o monstro do Hospital Psiquiátrico, que diziam ter as chaves da liberdade. Jaime guardara essa lenda em sua mente, contada pelos médicos e enfermeiros daquele lugar. Diziam que aquela era a verdadeira porta do inferno, que só podia ser aberta por um guardião como Nicolau.
         Jaime nunca acreditou nessa lenda.
         
(Continua...)

sábado, 18 de agosto de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 7

La sposa della notte
Por Heder Leite

         Por algum tempo, Jaime trabalhou bem próximo à esquina com a Rua da Relação. Ali conheceu o vulto dos anciãos, o apito dos pássaros, o alvoroço das crianças perdidas, a matriz de suas paixões. Permaneceu ali enquanto pôde. Por várias vezes, sentiu a umidade em suas coxas, o frio em seus tornozelos. Sempre que chovia um pouco mais, a Rua dos Inválidos alagava. E a mente de Jaime encharcava com seus sonhos, mergulhados em algum ponto do passado ainda vil, ainda lúcido, ainda vivo. Achou o velho cego que estava na hora de mudar de lugar; pegou seu chapéu furado, seguiu o andar mórbido de sua própria sombra e acolheu-se ao lado da Igreja Santo Antônio dos Pobres.
         Era sábado. A Rua dos Inválidos tinha um movimento incomum naquela noite. Jaime percebia as luzes de faróis, o barulho de vozes excitadas, ansiosas, alegres. O destino daquelas vozes era a Igreja. Não sabia dizer se se tratava de uma reunião, uma missa fora de hora. Garoava àquela hora e algumas pessoas corriam para dentro da paróquia. Algumas buzinas incomodavam os transeuntes; alguns moradores se chegavam às janelas; uns jovens angariavam uma vaga de cuidadores de carros, outros se acolhiam nos cantos da rua como curiosos, sem o quê fazer. Alguns se atiravam no meio dos outros com intenção maquiavélica, de tirar o que os outros não tinham, talvez a dignidade, o que Jaime não conhecia em sua pele, em sua longa sensação de fome e angústia.
         Naquela noite, um casamento movimentava a Rua dos Inválidos. Jaime ressoava sua leve e doce mente a momentos longínquos, sem saber o que sentir, sem tirar de sua mente o que realmente lhe enchia naquele instante. O véu da noiva balançava em sua linha de visão, podia perceber o suor e leveza da pele da bela moça, pele escaldante, alva, contrastando com seus fortes cabelos presos a arames invisíveis. Jaime entoou uma nova canção, num novo ponto da rua, ao lado da Igreja, bem perto dos pobres.
         A noiva, ao sair do carro, viu o velho cego acertando as cordas de seu instrumento; percebeu que a olhava com a fronte abaixo de sua linha de visão, como se tivesse medo do horizonte, do que viria, do que aconteceu. A noiva pediu um tempo, sentou-se a beira do carro e, a despeito dos pedidos alheios que entrasse na Igreja, pediu um guarda-chuva e observou o cântico de Jaime.
         Não queria lembrar de seus erros e suas mentiras; sentia a bateria de sua vida a poucos metros dali, a poucas palavras, resumida a um simples sim ou um simples piscar de olhos. A noiva transparecia em sua alva tez uma fuga jamais sentida, queria promessas, histórias pra contar. Queria voar, queria viver, queria saber o que fazia ali naquela hora. O cântico invadia sua alma, entendia o seu erro, trazia-lhe honras, salvas; seus olhos denunciavam a desigualdade deflagrada de seu coração. Trazia uma noiva a si, derramava em seu vestido acinzentado o óleo da tristeza e a angústia da solidão. Sabia que era hora de se libertar, de se prender, de pular, de cair, de se gostar e de odiar. A noiva sabia. Jaime também.
         A chuva não limitava o velho cego, que tocava cada vez mais forte, confundia o seu futuro com seu presente amargo e duvidoso. A noiva chorava a chuva em sua fronte, trazia o início para o fim e não conseguia enxergar o que via, de verdade. O que existia em sua mente transbordava na invisibilidade alheia, fazendo crer que sua fé se tornava perigosa, mas ainda sã. A chuva trazia um ar seco, as lembranças jamais esquecidas, os amores jamais amados, o desejo jamais realizado. A noiva queria o bem; Jaime achava que tocara bem, mas o dito repetido é mais forte, é o que marca, é o que fica. É o que mesmo debaixo de chuva se mantém seco, como o colo dos pais, dos amantes, dos corações puros.
         A noite repelia a insegurança; fazia forte o fraco, alto o baixo. O amor transbordava os absurdos, o medo, a malícia. Jaime confundia as mentes sãs e sábias daquela noite; a noiva atrasava o cerimonial. Eles se olhavam durante a canção que alimentava os ouvidos mais atentos da calçada; acordavam casas ao redor; mentiam para os santos que os observava; adoeciam as crianças mal alimentadas, debruçadas sob seu nariz; dormiam sob suas mentes enganadas e suadas. Jaime percebia nos lindos olhos castanhos escuros da noiva, combinados com a tonalidade de seus cabelos, uma louca vontade de amar e ser amada. Viu a noiva levantar-se, ao seu tempo; enxugar uma gota de lágrima barrenta em sua face, olhar a Lua por longos dois ou três segundos e seguir para a entrada da Igreja. Antes de entrar, porém, uma tórrida tempestade caiu sobre a Igreja Santo Antônio dos Pobres. Jaime se escondeu na Rua dos Inválidos, em algum canto onde pudesse encolher seu violino e descansar até Sol voltar. Não pôde ouvir o sim da noiva, tampouco experimentar do arroz do matrimônio.
Os espelhos se quebraram e Jaime não enxergou o reflexo da sua noiva naquela noite, que agora canta em Fá ou Só em sua pobre e cega mente.

(Continua...)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 6


Sueños de Verano
Por Heder Leite

Semanas antes do Natal, Jaime presenciou uma pequena manifestação naquela rua. Podia ouvir vozes conhecidas, soma de gritos e xingamentos, gargalhadas sobre o nada. Não entendia bem o motivo, mas sabia que uma obra da prefeitura não agradava a alguns de seus vizinhos. Sua barraca continuava intacta, a despeito do movimento aumentado naqueles dias. Operários transitavam com seus capacetes sujos de cimento, as roupas pesadas, sem saber se os protegiam dos perigos das obras ou se aceleravam a sua morte com o calor intenso que produzia. O verão na Rua dos Inválidos queima, ferve os sentimentos, aquece o âmago de Jaime. Para espantar o intenso suor, o velho cego afina seu instrumento e toca sem cessar, produzindo uma brisa suave em si, secando as gotas do trabalho, enxugando as lágrimas de sua dor presente.
Enquanto alguns manifestantes passavam pela sua barraca, Jaime entoava com sua cabeça baixa e olhos fechados uma de suas canções da estação. Era responsável pelo único vento que aquela rua tinha naquela manhã. Percebia os vultos de placas, dos pés, dos braços erguidos, dos gritos sem nexo e frases fabricadas. No íntimo de sua loucura, entendia a ineficiência daquele ato e se conformava com o barulho, com o calor, com a poeira levantada que o sujava a cada manhã. Um jovem, de pele morena, retirou seu capacete, enxugou o suor de sua face, sentou na calçada, arregaçou um pedaço de suas mangas e abriu uma garrafa de água.
Com barba rala, o jovem operário tinham músculos definidos, era alto e um olhar profundo. Parecia enxergar além daquela rua, além do que sua mente pudesse alcançar. Era um olhar cansado e ao mesmo tempo esperançoso, um olhar pronto para a manhã que se inicia, para a noite de alegrias e desafogo. Um olhar ora ansioso, ora conformado. O operário fazia companhia ao velho cego no seu curto período de descanso, querendo abstrair os gritos de loucura, o silencio de sua mente que tanto o enlouquece.
O cântico invadia as suas entranhas, levando-o a lugares que sonhava desde sua infância. Sentado naquela calçada, o jovem operário podia entrar nos grandes campos de futebol, poderia ser um grande goleiro ou artilheiro. Sentia o cheiro do seu consultório dentário, a leveza de suas gravatas e o peso de sua toga. Entre um gole e outro, o alisar de Jaime nas cordas de seu violino. Entre um tom e outro, os vários sonhos do operário.
Jaime enxergava os vultos do operário, bebia de sua água, com gosto amargo da solidão. Da ausência de seu pai, o grande sonho de sua recente juventude. Não entendia a ausência, apenas sentia em seu olhar aquela carência, da figura paterna de sua infância, das palmadas de exemplo que faltaram, dos carinhos matutinos, das palavras ternas, dos braços nos ombros. Jaime entoava mais forte e mais manso e o que saia dos olhos do operário o informava de toda sua carência, sua lágrima se fundia ao inevitável suor de verão.
Jaime ainda não percebera se a mente do operário era tão forte quanto os seus braços. Tentava decifrar enquanto o seu olhar profundo falava mentiras e verdades do seu passado e presente. Enxergava as lágrimas da dor, as dores do dia e da noite. Falavam por si as emoções fraternais que outrora teve. A perda de uma parte que foi um todo em sua história, o todo que faz falta em suas manhãs, suas tardes, em sua vida. Jaime sabia que sua mente era mais forte que seus braços.
A despeito de suas emoções, das placas infundadas e manifestos, esmagou a garrafa já vazia, colocou-a no chapéu do velho cego, vestiu seu capacete levantou-se. Armou-se com sua marreta, andou até o final da rua, atravessando pessoas de bem, pessoas usadas, idosos, crianças, jovens. Olhou para trás, viu o velho cego observando sua garrafa amassada e marretou suas memórias e sonhos contra uma velha parede.
O sol daquela manhã estava forte.
O de Jaime, porém, era menor.

(Continua...)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 5

Il latte di Hera
Por Heder Leite

          Levantou, secou sua fronte suada e iniciou uma nova canção.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não queria ver ninguém, não queria se apaixonar, sentir o gosto doce e amargo das flores, envenenado com o calor da estação, com o perfume outrora lamentado, sentido, consumido. Jaime queria apenas que sua doce lembrança o levasse de volta a Matilde, uma amiga, com quem compartilhou agradáveis e estonteantes dias de sua juventude. Matilde mora em seu coração, em sua mente corroída, em sua lápide, deveras.
         Um carrinho de flores passa pela Rua dos Inválidos, levando o perfume de suas memórias; são rosas, margaridas, lírios, orquídeas e violetas. O velho que as vende não as consome, as levam para jovens apaixonados, a amantes perdidos, a apreciadores curiosos, às varandas alheias, aos vasos antes vazios e às casas que exalam seus aromas. Matilde gostava de lírios, os mesmos que cantavam aos seus ouvidos naquelas tenras tardes ao lado de Jaime. O velho floricultor parou na barraca de Jaime, encostou seu carrinho e ouviu a canção que saía do violino do cego.
         Jaime alisava as cordas de seu instrumento como os lisos cabelos de Matilde, cortados ao meio, um pouco acima de seus ombros, bem escuros, um misto de indígena e oriental. Exalava o mais puro perfume das rosas, e as narinas do velho cego deleitavam-se com a brisa de suas palavras. Entoava mansamente o som de sua juventude, enquanto acariciava os finos cabelos da linda primavera do Oriente.
         O corpo do violino era Matilde em seus braços, despida de suas diferenças, de suas lamentações, exalando os lírios de sua paixão, fitando seu olhar com a pura seiva das flores da estação. Hera a alimentava em seu colo, vestia-a com o manto materno, entoando a eternidade de seu amor. Os olhos de Matilde enxergavam a cegueira do velho e a curava com o seu veneno; destilava seu odor jamais sentido, retirava da salgada tez o infinito, o puro, o amor. O olhar de Matilde cicatrizava as feridas ainda inexistentes de Jaime, guardados em segredos em sua mente.
         A voz de Matilde saía de seu corpo, com o acariciar de seus cabelos e o apertar de sua alma. O floricultor se admirava com a mansidão; pétalas voavam pela rua, perfumando os cantos de ureia, de suco gástrico das noites perdidas, da alcóolica percepção dos olhares vazios. Sua voz entoava a alegria de Jaime, florescia a sua mente em êxtase e fazia pousar em seus ombros a alegria, um dia percebida. De sua boca saía o leite de Hera, dourado como o crepúsculo, doce como a brisa.
         Os lábios de Matilde foram dados a Afrodite, rosados e puros, doces e tenros. Entreabertos, chamavam por Jaime todo o amanhecer e bebiam de seu amor a cada despedida. As rosas do floricultor não exalavam o mesmo perfume dos lábios de Matilde. Os lábios de Matilde foram roubados, foram perdidos pelos ventos da maturidade. Afrodite os consumiu sem piedade e fez maltratar o coração de Jaime.
Em sua memória, vivem o corpo de Matilde, seu veneno, seus finos cabelos orientais, sua boca entreaberta a lhe chamar. O beijo de Matilde brotava lírios na mente de Jaime, ao seu redor, em seu espírito. Da mesma fonte que alimentava Hércules, caíam gotas que saciavam a paixão do velho cego.
         O floricultor olhou o relógio, o tempo havia passado. Era preciso vender os perfumes, enfeitar as janelas, os amantes haviam de se perdoar, se amar. Pegou seu carrinho e desceu a Rua dos Inválidos oferecendo suas rosas, as flores do campo, margaridas. Antes, deixou um Lírio rosáceo no chapéu de Jaime, alegre como a primavera, doce como os lábios de Matilde, suave como seus cabelos orientais.
A Rua dos Inválidos nunca ouviu cântico tão vibrante e perfumado quanto naquela tarde. 
Em mi maior.

(Continua...)