Il latte di Hera
Por Heder Leite
Levantou, secou sua fronte suada
e iniciou uma nova canção.
Naquela tarde de outubro, Jaime não queria ver ninguém, não
queria se apaixonar, sentir o gosto doce e amargo das flores, envenenado com o
calor da estação, com o perfume outrora lamentado, sentido, consumido. Jaime
queria apenas que sua doce lembrança o levasse de volta a Matilde, uma amiga,
com quem compartilhou agradáveis e estonteantes dias de sua juventude. Matilde
mora em seu coração, em sua mente corroída, em sua lápide, deveras.
Um carrinho de flores passa pela Rua dos Inválidos, levando
o perfume de suas memórias; são rosas, margaridas, lírios, orquídeas e
violetas. O velho que as vende não as consome, as levam para jovens
apaixonados, a amantes perdidos, a apreciadores curiosos, às varandas alheias,
aos vasos antes vazios e às casas que exalam seus aromas. Matilde gostava de
lírios, os mesmos que cantavam aos seus ouvidos naquelas tenras tardes ao lado
de Jaime. O velho floricultor parou na barraca de Jaime, encostou seu carrinho
e ouviu a canção que saía do violino do cego.
Jaime alisava as cordas de seu instrumento como os lisos
cabelos de Matilde, cortados ao meio, um pouco acima de seus ombros, bem
escuros, um misto de indígena e oriental. Exalava o mais puro perfume das
rosas, e as narinas do velho cego deleitavam-se com a brisa de suas palavras.
Entoava mansamente o som de sua juventude, enquanto acariciava os finos cabelos
da linda primavera do Oriente.
O corpo do violino era Matilde em seus braços, despida de
suas diferenças, de suas lamentações, exalando os lírios de sua paixão, fitando
seu olhar com a pura seiva das flores da estação. Hera a alimentava em seu
colo, vestia-a com o manto materno, entoando a eternidade de seu amor. Os olhos
de Matilde enxergavam a cegueira do velho e a curava com o seu veneno;
destilava seu odor jamais sentido, retirava da salgada tez o infinito, o puro,
o amor. O olhar de Matilde cicatrizava as feridas ainda inexistentes de Jaime,
guardados em segredos em sua mente.
A voz de Matilde saía de seu corpo, com o acariciar de seus
cabelos e o apertar de sua alma. O floricultor se admirava com a mansidão;
pétalas voavam pela rua, perfumando os cantos de ureia, de suco gástrico das
noites perdidas, da alcóolica percepção dos olhares vazios. Sua voz entoava a
alegria de Jaime, florescia a sua mente em êxtase e fazia pousar em seus ombros
a alegria, um dia percebida. De sua boca saía o leite de Hera, dourado como o
crepúsculo, doce como a brisa.
Os lábios de Matilde foram dados a Afrodite, rosados e
puros, doces e tenros. Entreabertos, chamavam por Jaime todo o amanhecer e
bebiam de seu amor a cada despedida. As rosas do floricultor não exalavam o
mesmo perfume dos lábios de Matilde. Os lábios de Matilde foram roubados, foram
perdidos pelos ventos da maturidade. Afrodite os consumiu sem piedade e fez
maltratar o coração de Jaime.
Em
sua memória, vivem o corpo de Matilde, seu veneno, seus finos cabelos
orientais, sua boca entreaberta a lhe chamar. O beijo de Matilde brotava lírios
na mente de Jaime, ao seu redor, em seu espírito. Da mesma fonte que alimentava
Hércules, caíam gotas que saciavam a paixão do velho cego.
O floricultor olhou o relógio, o tempo havia passado. Era
preciso vender os perfumes, enfeitar as janelas, os amantes haviam de se
perdoar, se amar. Pegou seu carrinho e desceu a Rua dos Inválidos oferecendo suas
rosas, as flores do campo, margaridas. Antes, deixou um Lírio rosáceo no chapéu
de Jaime, alegre como a primavera, doce como os lábios de Matilde, suave como
seus cabelos orientais.
A
Rua dos Inválidos nunca ouviu cântico tão vibrante e perfumado quanto naquela
tarde.
Em mi maior.
Em mi maior.
(Continua...)
Quanta paixão se esconde por detrás do perfume das memórias de Jaime.
ResponderExcluirMatilde gostava de lírios, o mesmo lírio que enfeita os cabelos do cego de amor.
Zizi