quarta-feira, 4 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 5

Il latte di Hera
Por Heder Leite

          Levantou, secou sua fronte suada e iniciou uma nova canção.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não queria ver ninguém, não queria se apaixonar, sentir o gosto doce e amargo das flores, envenenado com o calor da estação, com o perfume outrora lamentado, sentido, consumido. Jaime queria apenas que sua doce lembrança o levasse de volta a Matilde, uma amiga, com quem compartilhou agradáveis e estonteantes dias de sua juventude. Matilde mora em seu coração, em sua mente corroída, em sua lápide, deveras.
         Um carrinho de flores passa pela Rua dos Inválidos, levando o perfume de suas memórias; são rosas, margaridas, lírios, orquídeas e violetas. O velho que as vende não as consome, as levam para jovens apaixonados, a amantes perdidos, a apreciadores curiosos, às varandas alheias, aos vasos antes vazios e às casas que exalam seus aromas. Matilde gostava de lírios, os mesmos que cantavam aos seus ouvidos naquelas tenras tardes ao lado de Jaime. O velho floricultor parou na barraca de Jaime, encostou seu carrinho e ouviu a canção que saía do violino do cego.
         Jaime alisava as cordas de seu instrumento como os lisos cabelos de Matilde, cortados ao meio, um pouco acima de seus ombros, bem escuros, um misto de indígena e oriental. Exalava o mais puro perfume das rosas, e as narinas do velho cego deleitavam-se com a brisa de suas palavras. Entoava mansamente o som de sua juventude, enquanto acariciava os finos cabelos da linda primavera do Oriente.
         O corpo do violino era Matilde em seus braços, despida de suas diferenças, de suas lamentações, exalando os lírios de sua paixão, fitando seu olhar com a pura seiva das flores da estação. Hera a alimentava em seu colo, vestia-a com o manto materno, entoando a eternidade de seu amor. Os olhos de Matilde enxergavam a cegueira do velho e a curava com o seu veneno; destilava seu odor jamais sentido, retirava da salgada tez o infinito, o puro, o amor. O olhar de Matilde cicatrizava as feridas ainda inexistentes de Jaime, guardados em segredos em sua mente.
         A voz de Matilde saía de seu corpo, com o acariciar de seus cabelos e o apertar de sua alma. O floricultor se admirava com a mansidão; pétalas voavam pela rua, perfumando os cantos de ureia, de suco gástrico das noites perdidas, da alcóolica percepção dos olhares vazios. Sua voz entoava a alegria de Jaime, florescia a sua mente em êxtase e fazia pousar em seus ombros a alegria, um dia percebida. De sua boca saía o leite de Hera, dourado como o crepúsculo, doce como a brisa.
         Os lábios de Matilde foram dados a Afrodite, rosados e puros, doces e tenros. Entreabertos, chamavam por Jaime todo o amanhecer e bebiam de seu amor a cada despedida. As rosas do floricultor não exalavam o mesmo perfume dos lábios de Matilde. Os lábios de Matilde foram roubados, foram perdidos pelos ventos da maturidade. Afrodite os consumiu sem piedade e fez maltratar o coração de Jaime.
Em sua memória, vivem o corpo de Matilde, seu veneno, seus finos cabelos orientais, sua boca entreaberta a lhe chamar. O beijo de Matilde brotava lírios na mente de Jaime, ao seu redor, em seu espírito. Da mesma fonte que alimentava Hércules, caíam gotas que saciavam a paixão do velho cego.
         O floricultor olhou o relógio, o tempo havia passado. Era preciso vender os perfumes, enfeitar as janelas, os amantes haviam de se perdoar, se amar. Pegou seu carrinho e desceu a Rua dos Inválidos oferecendo suas rosas, as flores do campo, margaridas. Antes, deixou um Lírio rosáceo no chapéu de Jaime, alegre como a primavera, doce como os lábios de Matilde, suave como seus cabelos orientais.
A Rua dos Inválidos nunca ouviu cântico tão vibrante e perfumado quanto naquela tarde. 
Em mi maior.

(Continua...)

Um comentário:

  1. Quanta paixão se esconde por detrás do perfume das memórias de Jaime.
    Matilde gostava de lírios, o mesmo lírio que enfeita os cabelos do cego de amor.

    Zizi

    ResponderExcluir

Obrigado pelo seu comentário!