quinta-feira, 5 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 6


Sueños de Verano
Por Heder Leite

Semanas antes do Natal, Jaime presenciou uma pequena manifestação naquela rua. Podia ouvir vozes conhecidas, soma de gritos e xingamentos, gargalhadas sobre o nada. Não entendia bem o motivo, mas sabia que uma obra da prefeitura não agradava a alguns de seus vizinhos. Sua barraca continuava intacta, a despeito do movimento aumentado naqueles dias. Operários transitavam com seus capacetes sujos de cimento, as roupas pesadas, sem saber se os protegiam dos perigos das obras ou se aceleravam a sua morte com o calor intenso que produzia. O verão na Rua dos Inválidos queima, ferve os sentimentos, aquece o âmago de Jaime. Para espantar o intenso suor, o velho cego afina seu instrumento e toca sem cessar, produzindo uma brisa suave em si, secando as gotas do trabalho, enxugando as lágrimas de sua dor presente.
Enquanto alguns manifestantes passavam pela sua barraca, Jaime entoava com sua cabeça baixa e olhos fechados uma de suas canções da estação. Era responsável pelo único vento que aquela rua tinha naquela manhã. Percebia os vultos de placas, dos pés, dos braços erguidos, dos gritos sem nexo e frases fabricadas. No íntimo de sua loucura, entendia a ineficiência daquele ato e se conformava com o barulho, com o calor, com a poeira levantada que o sujava a cada manhã. Um jovem, de pele morena, retirou seu capacete, enxugou o suor de sua face, sentou na calçada, arregaçou um pedaço de suas mangas e abriu uma garrafa de água.
Com barba rala, o jovem operário tinham músculos definidos, era alto e um olhar profundo. Parecia enxergar além daquela rua, além do que sua mente pudesse alcançar. Era um olhar cansado e ao mesmo tempo esperançoso, um olhar pronto para a manhã que se inicia, para a noite de alegrias e desafogo. Um olhar ora ansioso, ora conformado. O operário fazia companhia ao velho cego no seu curto período de descanso, querendo abstrair os gritos de loucura, o silencio de sua mente que tanto o enlouquece.
O cântico invadia as suas entranhas, levando-o a lugares que sonhava desde sua infância. Sentado naquela calçada, o jovem operário podia entrar nos grandes campos de futebol, poderia ser um grande goleiro ou artilheiro. Sentia o cheiro do seu consultório dentário, a leveza de suas gravatas e o peso de sua toga. Entre um gole e outro, o alisar de Jaime nas cordas de seu violino. Entre um tom e outro, os vários sonhos do operário.
Jaime enxergava os vultos do operário, bebia de sua água, com gosto amargo da solidão. Da ausência de seu pai, o grande sonho de sua recente juventude. Não entendia a ausência, apenas sentia em seu olhar aquela carência, da figura paterna de sua infância, das palmadas de exemplo que faltaram, dos carinhos matutinos, das palavras ternas, dos braços nos ombros. Jaime entoava mais forte e mais manso e o que saia dos olhos do operário o informava de toda sua carência, sua lágrima se fundia ao inevitável suor de verão.
Jaime ainda não percebera se a mente do operário era tão forte quanto os seus braços. Tentava decifrar enquanto o seu olhar profundo falava mentiras e verdades do seu passado e presente. Enxergava as lágrimas da dor, as dores do dia e da noite. Falavam por si as emoções fraternais que outrora teve. A perda de uma parte que foi um todo em sua história, o todo que faz falta em suas manhãs, suas tardes, em sua vida. Jaime sabia que sua mente era mais forte que seus braços.
A despeito de suas emoções, das placas infundadas e manifestos, esmagou a garrafa já vazia, colocou-a no chapéu do velho cego, vestiu seu capacete levantou-se. Armou-se com sua marreta, andou até o final da rua, atravessando pessoas de bem, pessoas usadas, idosos, crianças, jovens. Olhou para trás, viu o velho cego observando sua garrafa amassada e marretou suas memórias e sonhos contra uma velha parede.
O sol daquela manhã estava forte.
O de Jaime, porém, era menor.

(Continua...)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 5

Il latte di Hera
Por Heder Leite

          Levantou, secou sua fronte suada e iniciou uma nova canção.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não queria ver ninguém, não queria se apaixonar, sentir o gosto doce e amargo das flores, envenenado com o calor da estação, com o perfume outrora lamentado, sentido, consumido. Jaime queria apenas que sua doce lembrança o levasse de volta a Matilde, uma amiga, com quem compartilhou agradáveis e estonteantes dias de sua juventude. Matilde mora em seu coração, em sua mente corroída, em sua lápide, deveras.
         Um carrinho de flores passa pela Rua dos Inválidos, levando o perfume de suas memórias; são rosas, margaridas, lírios, orquídeas e violetas. O velho que as vende não as consome, as levam para jovens apaixonados, a amantes perdidos, a apreciadores curiosos, às varandas alheias, aos vasos antes vazios e às casas que exalam seus aromas. Matilde gostava de lírios, os mesmos que cantavam aos seus ouvidos naquelas tenras tardes ao lado de Jaime. O velho floricultor parou na barraca de Jaime, encostou seu carrinho e ouviu a canção que saía do violino do cego.
         Jaime alisava as cordas de seu instrumento como os lisos cabelos de Matilde, cortados ao meio, um pouco acima de seus ombros, bem escuros, um misto de indígena e oriental. Exalava o mais puro perfume das rosas, e as narinas do velho cego deleitavam-se com a brisa de suas palavras. Entoava mansamente o som de sua juventude, enquanto acariciava os finos cabelos da linda primavera do Oriente.
         O corpo do violino era Matilde em seus braços, despida de suas diferenças, de suas lamentações, exalando os lírios de sua paixão, fitando seu olhar com a pura seiva das flores da estação. Hera a alimentava em seu colo, vestia-a com o manto materno, entoando a eternidade de seu amor. Os olhos de Matilde enxergavam a cegueira do velho e a curava com o seu veneno; destilava seu odor jamais sentido, retirava da salgada tez o infinito, o puro, o amor. O olhar de Matilde cicatrizava as feridas ainda inexistentes de Jaime, guardados em segredos em sua mente.
         A voz de Matilde saía de seu corpo, com o acariciar de seus cabelos e o apertar de sua alma. O floricultor se admirava com a mansidão; pétalas voavam pela rua, perfumando os cantos de ureia, de suco gástrico das noites perdidas, da alcóolica percepção dos olhares vazios. Sua voz entoava a alegria de Jaime, florescia a sua mente em êxtase e fazia pousar em seus ombros a alegria, um dia percebida. De sua boca saía o leite de Hera, dourado como o crepúsculo, doce como a brisa.
         Os lábios de Matilde foram dados a Afrodite, rosados e puros, doces e tenros. Entreabertos, chamavam por Jaime todo o amanhecer e bebiam de seu amor a cada despedida. As rosas do floricultor não exalavam o mesmo perfume dos lábios de Matilde. Os lábios de Matilde foram roubados, foram perdidos pelos ventos da maturidade. Afrodite os consumiu sem piedade e fez maltratar o coração de Jaime.
Em sua memória, vivem o corpo de Matilde, seu veneno, seus finos cabelos orientais, sua boca entreaberta a lhe chamar. O beijo de Matilde brotava lírios na mente de Jaime, ao seu redor, em seu espírito. Da mesma fonte que alimentava Hércules, caíam gotas que saciavam a paixão do velho cego.
         O floricultor olhou o relógio, o tempo havia passado. Era preciso vender os perfumes, enfeitar as janelas, os amantes haviam de se perdoar, se amar. Pegou seu carrinho e desceu a Rua dos Inválidos oferecendo suas rosas, as flores do campo, margaridas. Antes, deixou um Lírio rosáceo no chapéu de Jaime, alegre como a primavera, doce como os lábios de Matilde, suave como seus cabelos orientais.
A Rua dos Inválidos nunca ouviu cântico tão vibrante e perfumado quanto naquela tarde. 
Em mi maior.

(Continua...)

domingo, 1 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 4


 Un Sorriso in Autunno
Por Heder Leite

         E quando as folhas caem, Jaime sabe que suas cicatrizes são apenas marcas de uma antiga face, de uma antiga pele, antigo olhar, antigo pensar. O vento seco lhe enxuga as escaldantes e sofridas mãos; maltratam sua garganta, arranhada desde outrora. Empoeira suas lentes, embaça vitrines, carrega a chuva. As folhas e o vento seco encobrem o sorriso de Jaime, nas tardes sem gosto da Rua dos Inválidos. As escassas árvores se despem nessa época de sonho e imaginação. Levam alegria, trazem esperança, às vezes dor, às vezes fome. Jaime acompanha o voo lento de algumas folhas e imagina o que elas levam consigo; vê que não voam sozinhas e que sempre caem separadas. Jaime observa o vulto do outono, esconde a carapaça, deflagra suas manchas.
         Uma moça, vestida com uma blusa azul, desenhada com flores, coloridas como a sua mocidade, para em frente ao velho cego. Por sobre seu pé esquerdo, recai uma seca folha, bem diferente da estampa reluzente de seu vestuário. Veio de uma árvore que ainda vive naquela rua, pouco depois da Igreja. Passou por bêbados, ambulantes, reboques, lixeiras. Escolheu o pé daquela moça, bem vestida, de pele alva, temente ao Sol, de rosto alegre e confuso, ao mesmo tempo refletindo mistério e um tom de medo. A moça era alta, seus cabelos escurecidos; olhava Jaime de cima, sem altivez.
         Sua pele refletia um amor diferente, que outrora amada, possuída; agora escondida numa espécie de pedra mármore, como se precisasse de certa proteção. A moça de blusa azul florida deixava seus cabelos esvoaçantes dizerem o que queria; seu olhar não falava e escondia algo alegre, triste, gritante e mudo. Os vultos do outono confundiam a mente de Jaime, que não conseguia enxergar as flores na blusa da jovem moça; as folhas secas voavam em sua imaginação e invadiam a estampa da menina. Jaime pegou seu violino, espalhou a poeira, levantou e iniciou um novo cântico.
         Em fá maior, entoou com precisão e harmonia o que se propôs a tocar naquela tarde. O vento tentava atrapalhar o velho cego, mas não era capaz de retirar dele as notas, a vibração, a sua vontade. Enquanto um grupo de folhas secas repousava ao seu redor, percebia no olhar profundo da jovem moça uma alegria escondida, revelando sua alegre infância, sua duvidosa adolescência, seu primeiro amor não correspondido, sua primeira deselegância, os primeiros sinais da idade adulta. Um breve sorrisinho revelava uma doce e meiga alma, apesar do ressecamento de seu espírito. Jaime tentava decifrar o motivo, mas suas bochechas escondiam a outra parte do sorriso. As folhas secas, agora, pareciam cobrir a moça e a ressecava mais ainda. O vento, como leva a chuva e as folhas, levava o som de Jaime até o final da rua, levando as dúvidas e as certezas da mente da bela moça. Alguns pássaros pousavam em seus ombros, beliscando algumas folhas, cuspindo emoções, retirando a dor, acariciando sua alma, revelando a segunda parte do sorriso.
Jaime sorriu.
Viu a moça descer a Rua dos Inválidos alegre, pulando como uma criança, com a mente livre e liberta pelo carinho dos pássaros. As folhas ficavam pelo caminho, reunindo-se ao redor de outros transeuntes, carentes do olhar de Jaime, carentes dos bicos de alguns pássaros.
         
(Continua...)