terça-feira, 26 de junho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 3


Il Freddo dell'inverno
Por Heder Leite

O frio consome os mais fracos e injustiçados. Recai sobre os ombros castigados pela dor, pelo amor, pela esperança infundada. O frio queima a alma, arde às juntas, escaldeia a pele; faz sofrer a tez, maltrata as artérias e dilacera o coração. Nos poucos dias de frio que a Rua dos Inválidos viveu, Jaime esquentou-se com seus acordes, abraçado ao seu pequeno e cinza chapéu, esperando que o amanhecer trouxesse um novo sol, uma nova luz e um novo calor.
O inverno traz o cinza, leva as nuvens pra bem longe, ventilam o doce e suave sabor do aconchego, esquecido nas tardes calorentas da Cidade. Nas tardes frias de junho, com gotículas finas de chuva fria, Jaime espera por seus clientes, enquanto afaga o primeiro cão que lhe faz companhia desde a véspera solitária. As pessoas desfilam casacos encardidos, mofados. Coberturas enfeitam o horizonte; os olhos estão desmascarados, com os óculos escondidos nas gavetas e nos fundos das bolsas. Jaime poderia ver cara a cara, enxergar o mais íntimo do olhar alheio, entender a dor, decifrar a paixão, a angústia, o anseio. Resolveu levantar; resolveu tocar, apesar das gotículas, apesar do frio.
Em movimentos repetitivos, o som de seu violino alcançava o outro lado da rua. Seus pelos arrepiavam-se com o movimento, balançavam com o vento gelado e tremiam diante dos vultos que se esquivavam em parar a sua frente. Um jovem de pele clara parou na sua barraca e começou a admirar o seu canto. Pequenos movimentos em sua cabeça denunciavam uma vontade de seguir o ritmo escaldante do inverno. Seus olhos eram, porém baixos, e enxergavam o infinito, muito distante, sem uma convergência exata, sem um destino traçado, sem ao menos traços. O rapaz sentia o fundo da canção e parecia sonhar acordado, não parecia olhar diretamente para Jaime; seu olhar era distante, baixo, ressoando de leve sua cabeça, em movimentos rítmicos. Não vestia casaco e usava uma cobertura antiga, acinzentada como o tempo, como o céu, como sua alma.
Jaime continuava sua canção; sua fronte forçava o seu desejo e expressava certa dor. O relento aproximava o rapaz do velho louco. Suas calças pareciam moderninhas, fora da época de sua mente e de seu olhar. Seu olhar aproximava-o do passado, de seus erros, a ponto de sentir desespero e incerteza. Jaime acreditava nisso e continuava sua canção, apertando o violino contra o seu peito aberto e gelado. Escutava do rapaz suas penas, suas perdas e via em seus cílios entreabertos e embebidos com o orvalho seco um certo tom de desesperança. Jaime podia apenas tocar sua canção.
À luz de um feixe solar, cegando parcialmente sua limitada visão, viu o rapaz sentando na calçada, amarrando os seus calçados com um cadarço sujo de lama. Limpou suas mãos na própria calçada, levantou-se e seguiu rua abaixo, pouco antes do término da canção que Jaime entoava. Não deixou nada no chapéu do velho, apenas um longínquo olhar que lhe mostrava um futuro incerto e um presente conturbado e triste. Como o inverno sem agasalho, o frio sem abraço.
Em fá menor, Jaime interrompia sua canção e tentava enxergar ao fundo o destino do rapaz, perambulando a esmo pelo canto de sua rua, tropeçando nas esquinas de sua vida, caindo e levantando. A fina chuva havia cessado; Jaime sentou a frente de sua barraca, pegou seu velho chapéu e aqueceu o faminto cachorro que abraçava suas pernas desde as primeiras horas do dia.
Secou seu violino, alinhou suas cordas e dormiu.

(continua...)

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 2

Chaconne
Por Heder Leite

        O que Jaime enxergava era a semente de uma mente rica em lembranças, sonhos esquecidos, esperança abandonada, companhia solitária. Vultos se formavam a cada semblante que se aproximava, configurando uma rela de sentimentos escondidos, ocultos, guardados no mais íntimo de sua alma. As cores se confundiam com o outono; as gotas de chuva apagavam o colorido em seu cristalino. Sua lente estava arranhada, mas um pouco de luz ainda podia lhe invadir. A luz refletia nos cantos de um prisma oco, informando-lhe do desejo alheio, mentindo acerca de suas dores e omitindo o que realmente se via. Jaime podia ver o que sua mente quisesse e sentisse.
         A barraca do louco velho fica entre as ruas da Relação e a Av. Mem de Sá. Não vende nada, apenas dá. Aprendera tocar violino ainda no hospital Psiquiátrico com um companheiro, outro paciente. Desde então, toca algumas canções sem saber sequer os nomes, os autores, o que significam. Aprendeu as notas e só. Sempre foi o suficiente. Por debaixo de sua mesa, repousa um pequeno chapéu cinza, descosturado, castigado pelo tempo, refletindo bem o seu dono. Ali, as pessoas, que param e escutam o doce e grave som produzido pelo velho violino, colocam alguns trocados e moedas, alguns falsos, outros que nada mais valem. Alguns o fazem por desprezo e maldade; outros gostariam de retribuir-lhe o momento, mas não têm mais que um pedaço de papel com dizeres de boa sorte, folhetos de agiotas, de ourives, de casas noturnas. Jaime agradece a todos, esvazia o chapéu, encomenda a sua próxima refeição e observa o próximo cliente, para o qual oferece outra canção.
         Do outro lado da rua, Jaime vê se aproximar uma jovem moça, de cabelos longos e bem pretos. Sua pele é escaldante, reflexo do sol da tarde. A moça já deve ter castigado sua tenra tez desde as primeiras horas do dia, fato denunciado pelas manchas em sua camisa branca e um pouco transparente. As mangas amassadas indicavam que carregava uma bolsa, que decerto estava cheia. A moça parecia cansada e demonstrava interesse pelo cântico que Jaime entoava, em Ré menor, harmonicamente chamando sua atenção, ocluindo os olhos nos compassos e mexendo o seu corpo de tempo em tempo. Reluzia de seus olhos uma forte luz castanha, uma esclera limpa, cheia de esperança. Jaime acariciava seu violino como se estivesse consumindo a bela moça.
         Jaime via em sua pupila contraída que a moça era amorosa e densa. Bastaram alguns minutos de descanso e sua pele já reluzia um brilho incomum. Seu olhar longínquo indicava que sabia de seu destino, cruzava bem o seu objetivo e seus obstáculos. Tinha uma força meiga, capaz de destruir qualquer plano contrário. Seus cabelos balançavam com o vento e Jaime podia sentir o suave odor de sua fragrância; a moça demonstrava altivez e decisão. A suavidade de sua pele era sentida nas cordas de seu violino, seus cabelos reproduziam um som repetido, que Jaime tinha certeza de já ter visto antes. A moça brilhava à sua frente, pele reluzente, longos fios negros, altura mediana, traduzindo o som de suas angústias em tom maior.
         Tinha certeza de que estava atrás de seu grande amor e que deveras não o encontraria ali, na Rua dos Inválidos. Mas deve ter passado pela rua após visita na velha Igreja local. Sua bolsa deve ter ficado com alguma amiga que viria logo atrás para irem embora. Parecia estar planejando alguma saída, talvez uma noite nos bares da Lapa ou uma tarde de fotos em Petrópolis. A moça não parecia decidida quanto a isso. Desenhava seus longos e finos fios sobre os ombros e abaixava o olhar, confirmando toda a sua impressão. Ao som dos últimos acordes, a moça baixa uma nota de Real e dá as costas. Jaime entoa o fim de sua canção, certo de suas notas, certo do que viu.
         Sebastiana, uma senhora de 89 anos, teve uma tarde feliz na Rua dos Inválidos. Seguiu em direção à Praça Tiradentes, onde pegou seu ônibus e voltou satisfeita para sua casa.
Mas antes, prendeu seus longos cabelos com uma fita, que tinha guardada em sua bolsa. 


(Continua...)

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 1

O Arco-íris Tem Sete Cores
Por Heder Leite

         Jaime trabalha na rua, debaixo de sol ou de chuva; sente o cheiro das escórias, do absinto camuflado de gravatas, da baunilha derretida das crianças, do chocolate ressecado dos adolescentes, da impura fumaça opiácea, piscodélica, que adentra suas narinas sem pedir, que sai quando quer, e volta sem ser chamada. Seu alívio vem em dia de chuva, trazendo consigo o seco e suave odor de areia, capaz de levar por algum tempo o odor pútrido das entranhas de outrem. As ruínas das velhas casas revelam um passado abandonado. O piso descontínuo combina com os muros incompletos. Os transeuntes apressados opõem-se aos vagabundos solitários. A barraca de Jaime descansa bem na metade da rua; um ponto invejável.
         Havia uns dez anos que Jaime chegou naquela rua. Abandonado no início da idade adulta por loucura, fugiu do Hospital Psiquiátrico e perambula pelas ruas desde então. Conhece bem os viadutos, os perigos do acolhimento indevido, o clima interno das delegacias, o sabor das prostitutas e a dor dos hematomas merecidos. A Emergência dos hospitais conheciam bem o sujeito; já gastou nas salas de corte e costura alguns fios de nylon, reparando cortes na face, no dorso, nas pernas. Numa última visita à emergência do Souza Aguiar, chegou desacordado, levado pelos bombeiros militares de serviço na Presidente Vargas. Permaneceu nos corredores do hospital por algumas semanas, cuidado por um grupo de estudantes de medicina, ávidos pelo sentimento de salvar vidas, programando procedimentos, prescrevendo sua sorte e negociando com os staffs as novas condutas. Apesar de tudo, sobreviveu às condutas dos jovens doutores. Acordou numa cadeira fria de metal, amarrado com uma faixa de crepon, sentindo um ardor em seu braço esquerdo, de onde uma fina mangueira plástica preenchida de soro lhe hidratava. Algumas pessoas passavam à sua frente, sem ao menos lhe oferecer um “bom dia” ou “em que posso ajudar?”. Jaime estava fraco, uma ferida em seu dorso lhe ardia a alma. Fraco também estava o nó do crepon que se desfez sem trabalho. Jaime saiu pela porta da frente do hospital, cumprimentou o guarda e voltou ao seu lar.
         Perambulou por alguns dias pelas ruas do Centro, sem saber aonde ir. Tomava banho com a chuva de verão, secava-se com os jornais lidos. Jaime não sabia onde estava, o que havia acontecido. Procurou por alguma daquelas enfermeiras do Hospital Psiquiátrico, de que sentia saudades naquele momento. Foi guiado pelo destino à sua rua final, sem metrô ou viatura, com os dedos caleijados e a ferida cicatrizada. Seu olhar, porém, não era o mesmo. As cores eram turvas, os reflexos dolorosos. Não diferenciava os bandidos dos executivos quando lhe cuspiam à face. Não discernia as senhoras que lhe dava o resto do almoço das prostitutas que lamentavam sua condição atual. O destino sugeriu-lhe bem o seu endereço final.
         Jaime mora na Rua dos Inválidos.
         Jaime estava cego.