sábado, 6 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 9


Le Fantôme
Por Heder Leite

         A velhice era a doença de Jaime; a cegueira, a sua força. Suas canções transpassavam a Rua dos Inválidos; eram ouvidas até na Praça da República. As pessoas que se admiravam com seus cânticos levavam consigo os tons mais modestos e mais agudos para casa. Levavam as expressões, o seu suor, as suas lágrimas. Jaime deixava sua emoção aparecer, não conseguia esconder o que sentia. Seu tom era sincero, sua música o decifrava. E não deixava mágoas nem dúvidas. As pessoas levavam Jaime para casa, por completo.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não conseguia expressar os seus tons como antes. Cansado e abatido, o velho cego parecia se entregar a própria sorte. Não enxergava seu antigo companheiro, seu chapéu, outrora cheio de bugigangas, encontrava-se vazio, assim como sua alma. Chorava a saudade de Matilde, a angústia de Nicolau, as dúvidas alheias compartilhadas por todo esse tempo. Exalava as flores por ali passadas, o suor por vezes ali pingado, os xingamentos dos cidadãos solitários, a uréia dos moribundos e o hálito doce e infiel das prostitutas. A Lapa saudava o velho cego, deixando-o sóbrio, pronto para mais uma canção. Mas suas forças estavam perdidas.
         Uma moça que passava naquela tarde, com seus longos cabelos encaracolados, claros como o Sol, brilhantes como a Lua, pegou o chapéu de Jaime, bateu contra sua roupa, como se tirasse alguma sujeira, e colocou em sua cabeça. Sorriu para o velho cego e beijou sua testa. Tirou de sua bolsa uma pequena máscara quebrada e cobriu o rosto de Jaime. 
        Um senhor que vestia um sobretudo, bem aquém das expectativas da bela moça, parou no outro lado da rua e, percebendo que Jaime o vira, sentou numa cadeira de bar vazia, esperando que a moça o visse, como se implorasse pelo seu olhar, por um beijo. Jaime se escorou em sua quebrada mesa, levantando-se, entoando uma nova canção.
         A máscara não impedia que Jaime visse o senhor do outro lado da rua. Sua fronte denunciava os cânticos da nova estação, trazendo as flores ainda perfumadas, ainda não inaladas pelos amantes. As pétalas que caíam a sua frente formavam o buquê de sua noiva, presa, desaparecida. Jaime percebera a angústia no coração daquele homem e entoava com força cada nota de sua canção. Um grupo de homens e mulheres desciam a Rua dos Inválidos como apoio ao velho cego e, com flautas e outros instrumentos, pararam em frente à sua barraca. A bela moça dançava com os pombos que pousavam na calçada, o senhor angustiado chorava a solidão. A máscara de Jaime reluzia o brilho daquela tarde, como se quisesse se despedir de algo, como se pressentisse o pior.
         Clarins e bumbos, violino e flautas. A Rua dos Inválidos acompanhava o maior concerto que o velho jamais imaginara em participar. A moça olhava com piedade, ajeitando-lhe o chapéu, acariciando sua crespa face, secando sua tez. O senhor clamava em silêncio o seu amor, conformando-se com a escuridão do momento. Receando pelo seu fim solitário, buscava a luz na máscara quebrada do velho cego. Estimava compaixão, apreço, piedade.
         Jaime deu sinais de cansaço quando os primeiros pingos caíram em sua testa. A chuva afastava os pequenos animais e aproximava ainda mais a bela moça do velho cego. Aos poucos, apenas o violino de Jaime era ouvido. Os outros instrumentos eram consumidos pela fina chuva que caía àquela hora. A Rua dos Inválidos em poucos minutos ficou deserta e apenas o senhor, Jaime e a bela moça permaneciam, como se participassem de um duelo final. A chuva tomava os cantos da rua, não sendo mais possível perceber a diferença entre a calçada e o asfalto. A água barrenta invadia os sapatos sujos de Jaime, esmorecia o seu sorriso, como se estivesse satisfeito com tudo o que fizera. Olhou para o céu cinza, carregado, deixando que as gotas limpassem a sua estranha máscara. Guardou seu violino e pegou a mão da bela moça. Por alguns instantes, dançou com ela, ao som da música que saía de seu instinto e que só os dois podiam ouvir.  Como se nascesse de novo, Jaime entregou a mão da moça ao senhor no outro lado da rua e sentiu os fortes raios de calor entrarem em sua alma. Voltou à sua barraca, com suas roupas encharcadas. Viu o casal descendo a rua de mãos dadas, feliz. Libertou-se Jaime de seus fantasmas, de seus medos, deixando cair por sobre seus pés a sua máscara.
Olhou para o céu e viu o Sol brilhar. Percebera que seu cansaço não era definitivo. Era só passageiro. 

(Continua...

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 8


La Campanella
Por Heder Leite

         A expressão de terror, angústia e desespero é uma realidade naqueles que transitam a Rua dos Inválidos. As constantes cheias, os manifestos improdutivos, a gritaria que silencia em nada, o choro das crianças perdidas, o hálito de boldo das prostitutas da Lapa. Tudo em sua mente, Jaime sente cada etapa dessas intempéries, cada odor e cada som que vêm não sabe ele de onde. Apenas sente. Mesmo debaixo de um escaldante sol, sem molhar a esmo sua tórrida faringe, o velho se levanta e deixa vir em sua tez os raios que a fazem escura e cintilante. Passa um pano sujo em seu bornal, espera que o alimentem até o final do dia e inicia uma nova canção.
         Um senhor branco, bem alto e meio desengonçado para em frente à barraca de Jaime. Está a admirar o seu ainda baixo cântico, não sabendo ainda discernir a tonalidade, apesar de suas grandes orelhas. Jaime percebera que além de suas orelhas grandes e disformes, aquele senhor possuía um nariz desproporcional, suas narinas abertas consumiam boa parte do bom e do mau odor que a Rua dos Inválidos proporcionava. Encarava o velho cego abrindo ainda mais suas narinas, como se aspirasse alguma coisa de sua barraca. Talvez um alimento perdido, uma fruta ainda comestível, uma bebida que lhe fosse à mente, talvez a destruindo, ou simplesmente a alimentando. O senhor alto de orelhas e nariz grandes brindava a nova canção com os transeuntes, com um olhar medonho, com sobrancelhas levantadas e olhos apenas entreabertos, como se quisesse investigar ou descobrir algo. Jaime pouco sentira medo em sua vida, apesar das noites isolado no hospício, das tardes frias de julho, dos viadutos de sua cidade, das macas geladas dos hospitais por onde passou. Jaime sentira um certo medo daquele senhor. Mas continuava a tocar.
         Percebera que seu olhar não passara pela Igreja Santo Antônio dos Pobres. Era como se tivesse um pacto. Sua barba cortada antes do queixo, modelando um desenho da costeleta a sua bochecha, se contrapunha ao seu esvoaçante cabelo. Era inquieto, meio crespo e liso. Jaime tentava não entender sua mente; tentava não acariciar o olhar daquele senhor. Mas já o fitava querendo mais, querendo decifrar o que aquela mente dizia, ou pelo menos diria se quisesse. Aquele senhor, de barba desenhada, cabelos longos e esvoaçantes, desengonçado por sua altura, de olhos diabólicos, narinas e orelhas gigantes, fitava o velho cego e parecia exigir do seu melhor, exigir as melhores notas, o melhor concerto, a melhor canção.
         Suas mãos mostravam longos dedos, os maiores que o cego jamais vira. Jaime completava sua efêmera descrição do que considerava o ser humano mais feio e horrendo que possa ter visto. Se não fosse o próprio diabo, aquele homem estaria bem próximo daquele título. Jaime podia perceber sua atração pelo mal, seus dias libertinos, seus prazeres noturnos. Era senhor de vida desregrada, talvez boêmio, talvez doente. Não o tinha visto pelos bares da Lapa ainda e sua presença seria facilmente percebida. Jaime sabia que aquele senhor era estrangeiro, não frequentava a Rua dos Inválidos. O senhor ouvia atentamente a canção de Jaime, permitindo que o velho cego decifrasse seus desejos e suas virtudes, além, de um pouco de suas maledicências.
         Queria brindar seus últimos dias de vida passando por aquelas ruas. Queria desfrutar dos prazeres das ruas do Senado, do Rezende, antes de parar na rua de Jaime, na rua de todos os inválidos. Queria se encontrar com seu amigo de hospício, que não pudera compartilhar bons momentos por entraves da vida cotidiana dos loucos. Tentava encobrir-lhe os olhos, não deixando Jaime ver quem abrira a porta da frente do Hospital Psiquiátrico de onde Jaime fugira. Aquelas mãos longas puderam abrir a maçaneta e mudar o destino do velho cego. Sofrera por anos naquele lugar, sendo tratado por vezes como um monstro, por vezes como um inválido desengonçado e feio. Trouxe consigo o ódio e a blasfêmia, além da solidão que a Reforma Psiquiátrica lhe deu. Não encontrou em sua família o abrigo necessário, perambulou a procura de algum amigo, fez maldades nas ruas, brindou o sangue alheio, machucou o próprio coração. Em sua mente, porém, Jaime se enxerga e consegue estimar carinho e amor, escondidos no coração daquele horrendo homem.
         O senhor gigante parecia satisfeito pela canção que acabara de ouvir; tentava deambular, mas, com suas longas pernas, tropeçava em si mesmo. Alguns metros a frente, olhou para o velho cego e parecia querer se despedir. Como da última vez que o vira, fechou os portões a sete chaves e seguiu só em direção aos Arcos, onde jazem parte de seus pulmões, já consumidos pela tuberculose que o mata dia após dia.
         Percebendo que seu bornal fora preenchido, Jaime sentou para comer, logo após terminar sua canção. E lembrou de um certo Nicolau, o monstro do Hospital Psiquiátrico, que diziam ter as chaves da liberdade. Jaime guardara essa lenda em sua mente, contada pelos médicos e enfermeiros daquele lugar. Diziam que aquela era a verdadeira porta do inferno, que só podia ser aberta por um guardião como Nicolau.
         Jaime nunca acreditou nessa lenda.
         
(Continua...)

sábado, 18 de agosto de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 7

La sposa della notte
Por Heder Leite

         Por algum tempo, Jaime trabalhou bem próximo à esquina com a Rua da Relação. Ali conheceu o vulto dos anciãos, o apito dos pássaros, o alvoroço das crianças perdidas, a matriz de suas paixões. Permaneceu ali enquanto pôde. Por várias vezes, sentiu a umidade em suas coxas, o frio em seus tornozelos. Sempre que chovia um pouco mais, a Rua dos Inválidos alagava. E a mente de Jaime encharcava com seus sonhos, mergulhados em algum ponto do passado ainda vil, ainda lúcido, ainda vivo. Achou o velho cego que estava na hora de mudar de lugar; pegou seu chapéu furado, seguiu o andar mórbido de sua própria sombra e acolheu-se ao lado da Igreja Santo Antônio dos Pobres.
         Era sábado. A Rua dos Inválidos tinha um movimento incomum naquela noite. Jaime percebia as luzes de faróis, o barulho de vozes excitadas, ansiosas, alegres. O destino daquelas vozes era a Igreja. Não sabia dizer se se tratava de uma reunião, uma missa fora de hora. Garoava àquela hora e algumas pessoas corriam para dentro da paróquia. Algumas buzinas incomodavam os transeuntes; alguns moradores se chegavam às janelas; uns jovens angariavam uma vaga de cuidadores de carros, outros se acolhiam nos cantos da rua como curiosos, sem o quê fazer. Alguns se atiravam no meio dos outros com intenção maquiavélica, de tirar o que os outros não tinham, talvez a dignidade, o que Jaime não conhecia em sua pele, em sua longa sensação de fome e angústia.
         Naquela noite, um casamento movimentava a Rua dos Inválidos. Jaime ressoava sua leve e doce mente a momentos longínquos, sem saber o que sentir, sem tirar de sua mente o que realmente lhe enchia naquele instante. O véu da noiva balançava em sua linha de visão, podia perceber o suor e leveza da pele da bela moça, pele escaldante, alva, contrastando com seus fortes cabelos presos a arames invisíveis. Jaime entoou uma nova canção, num novo ponto da rua, ao lado da Igreja, bem perto dos pobres.
         A noiva, ao sair do carro, viu o velho cego acertando as cordas de seu instrumento; percebeu que a olhava com a fronte abaixo de sua linha de visão, como se tivesse medo do horizonte, do que viria, do que aconteceu. A noiva pediu um tempo, sentou-se a beira do carro e, a despeito dos pedidos alheios que entrasse na Igreja, pediu um guarda-chuva e observou o cântico de Jaime.
         Não queria lembrar de seus erros e suas mentiras; sentia a bateria de sua vida a poucos metros dali, a poucas palavras, resumida a um simples sim ou um simples piscar de olhos. A noiva transparecia em sua alva tez uma fuga jamais sentida, queria promessas, histórias pra contar. Queria voar, queria viver, queria saber o que fazia ali naquela hora. O cântico invadia sua alma, entendia o seu erro, trazia-lhe honras, salvas; seus olhos denunciavam a desigualdade deflagrada de seu coração. Trazia uma noiva a si, derramava em seu vestido acinzentado o óleo da tristeza e a angústia da solidão. Sabia que era hora de se libertar, de se prender, de pular, de cair, de se gostar e de odiar. A noiva sabia. Jaime também.
         A chuva não limitava o velho cego, que tocava cada vez mais forte, confundia o seu futuro com seu presente amargo e duvidoso. A noiva chorava a chuva em sua fronte, trazia o início para o fim e não conseguia enxergar o que via, de verdade. O que existia em sua mente transbordava na invisibilidade alheia, fazendo crer que sua fé se tornava perigosa, mas ainda sã. A chuva trazia um ar seco, as lembranças jamais esquecidas, os amores jamais amados, o desejo jamais realizado. A noiva queria o bem; Jaime achava que tocara bem, mas o dito repetido é mais forte, é o que marca, é o que fica. É o que mesmo debaixo de chuva se mantém seco, como o colo dos pais, dos amantes, dos corações puros.
         A noite repelia a insegurança; fazia forte o fraco, alto o baixo. O amor transbordava os absurdos, o medo, a malícia. Jaime confundia as mentes sãs e sábias daquela noite; a noiva atrasava o cerimonial. Eles se olhavam durante a canção que alimentava os ouvidos mais atentos da calçada; acordavam casas ao redor; mentiam para os santos que os observava; adoeciam as crianças mal alimentadas, debruçadas sob seu nariz; dormiam sob suas mentes enganadas e suadas. Jaime percebia nos lindos olhos castanhos escuros da noiva, combinados com a tonalidade de seus cabelos, uma louca vontade de amar e ser amada. Viu a noiva levantar-se, ao seu tempo; enxugar uma gota de lágrima barrenta em sua face, olhar a Lua por longos dois ou três segundos e seguir para a entrada da Igreja. Antes de entrar, porém, uma tórrida tempestade caiu sobre a Igreja Santo Antônio dos Pobres. Jaime se escondeu na Rua dos Inválidos, em algum canto onde pudesse encolher seu violino e descansar até Sol voltar. Não pôde ouvir o sim da noiva, tampouco experimentar do arroz do matrimônio.
Os espelhos se quebraram e Jaime não enxergou o reflexo da sua noiva naquela noite, que agora canta em Fá ou Só em sua pobre e cega mente.

(Continua...)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 6


Sueños de Verano
Por Heder Leite

Semanas antes do Natal, Jaime presenciou uma pequena manifestação naquela rua. Podia ouvir vozes conhecidas, soma de gritos e xingamentos, gargalhadas sobre o nada. Não entendia bem o motivo, mas sabia que uma obra da prefeitura não agradava a alguns de seus vizinhos. Sua barraca continuava intacta, a despeito do movimento aumentado naqueles dias. Operários transitavam com seus capacetes sujos de cimento, as roupas pesadas, sem saber se os protegiam dos perigos das obras ou se aceleravam a sua morte com o calor intenso que produzia. O verão na Rua dos Inválidos queima, ferve os sentimentos, aquece o âmago de Jaime. Para espantar o intenso suor, o velho cego afina seu instrumento e toca sem cessar, produzindo uma brisa suave em si, secando as gotas do trabalho, enxugando as lágrimas de sua dor presente.
Enquanto alguns manifestantes passavam pela sua barraca, Jaime entoava com sua cabeça baixa e olhos fechados uma de suas canções da estação. Era responsável pelo único vento que aquela rua tinha naquela manhã. Percebia os vultos de placas, dos pés, dos braços erguidos, dos gritos sem nexo e frases fabricadas. No íntimo de sua loucura, entendia a ineficiência daquele ato e se conformava com o barulho, com o calor, com a poeira levantada que o sujava a cada manhã. Um jovem, de pele morena, retirou seu capacete, enxugou o suor de sua face, sentou na calçada, arregaçou um pedaço de suas mangas e abriu uma garrafa de água.
Com barba rala, o jovem operário tinham músculos definidos, era alto e um olhar profundo. Parecia enxergar além daquela rua, além do que sua mente pudesse alcançar. Era um olhar cansado e ao mesmo tempo esperançoso, um olhar pronto para a manhã que se inicia, para a noite de alegrias e desafogo. Um olhar ora ansioso, ora conformado. O operário fazia companhia ao velho cego no seu curto período de descanso, querendo abstrair os gritos de loucura, o silencio de sua mente que tanto o enlouquece.
O cântico invadia as suas entranhas, levando-o a lugares que sonhava desde sua infância. Sentado naquela calçada, o jovem operário podia entrar nos grandes campos de futebol, poderia ser um grande goleiro ou artilheiro. Sentia o cheiro do seu consultório dentário, a leveza de suas gravatas e o peso de sua toga. Entre um gole e outro, o alisar de Jaime nas cordas de seu violino. Entre um tom e outro, os vários sonhos do operário.
Jaime enxergava os vultos do operário, bebia de sua água, com gosto amargo da solidão. Da ausência de seu pai, o grande sonho de sua recente juventude. Não entendia a ausência, apenas sentia em seu olhar aquela carência, da figura paterna de sua infância, das palmadas de exemplo que faltaram, dos carinhos matutinos, das palavras ternas, dos braços nos ombros. Jaime entoava mais forte e mais manso e o que saia dos olhos do operário o informava de toda sua carência, sua lágrima se fundia ao inevitável suor de verão.
Jaime ainda não percebera se a mente do operário era tão forte quanto os seus braços. Tentava decifrar enquanto o seu olhar profundo falava mentiras e verdades do seu passado e presente. Enxergava as lágrimas da dor, as dores do dia e da noite. Falavam por si as emoções fraternais que outrora teve. A perda de uma parte que foi um todo em sua história, o todo que faz falta em suas manhãs, suas tardes, em sua vida. Jaime sabia que sua mente era mais forte que seus braços.
A despeito de suas emoções, das placas infundadas e manifestos, esmagou a garrafa já vazia, colocou-a no chapéu do velho cego, vestiu seu capacete levantou-se. Armou-se com sua marreta, andou até o final da rua, atravessando pessoas de bem, pessoas usadas, idosos, crianças, jovens. Olhou para trás, viu o velho cego observando sua garrafa amassada e marretou suas memórias e sonhos contra uma velha parede.
O sol daquela manhã estava forte.
O de Jaime, porém, era menor.

(Continua...)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 5

Il latte di Hera
Por Heder Leite

          Levantou, secou sua fronte suada e iniciou uma nova canção.
         Naquela tarde de outubro, Jaime não queria ver ninguém, não queria se apaixonar, sentir o gosto doce e amargo das flores, envenenado com o calor da estação, com o perfume outrora lamentado, sentido, consumido. Jaime queria apenas que sua doce lembrança o levasse de volta a Matilde, uma amiga, com quem compartilhou agradáveis e estonteantes dias de sua juventude. Matilde mora em seu coração, em sua mente corroída, em sua lápide, deveras.
         Um carrinho de flores passa pela Rua dos Inválidos, levando o perfume de suas memórias; são rosas, margaridas, lírios, orquídeas e violetas. O velho que as vende não as consome, as levam para jovens apaixonados, a amantes perdidos, a apreciadores curiosos, às varandas alheias, aos vasos antes vazios e às casas que exalam seus aromas. Matilde gostava de lírios, os mesmos que cantavam aos seus ouvidos naquelas tenras tardes ao lado de Jaime. O velho floricultor parou na barraca de Jaime, encostou seu carrinho e ouviu a canção que saía do violino do cego.
         Jaime alisava as cordas de seu instrumento como os lisos cabelos de Matilde, cortados ao meio, um pouco acima de seus ombros, bem escuros, um misto de indígena e oriental. Exalava o mais puro perfume das rosas, e as narinas do velho cego deleitavam-se com a brisa de suas palavras. Entoava mansamente o som de sua juventude, enquanto acariciava os finos cabelos da linda primavera do Oriente.
         O corpo do violino era Matilde em seus braços, despida de suas diferenças, de suas lamentações, exalando os lírios de sua paixão, fitando seu olhar com a pura seiva das flores da estação. Hera a alimentava em seu colo, vestia-a com o manto materno, entoando a eternidade de seu amor. Os olhos de Matilde enxergavam a cegueira do velho e a curava com o seu veneno; destilava seu odor jamais sentido, retirava da salgada tez o infinito, o puro, o amor. O olhar de Matilde cicatrizava as feridas ainda inexistentes de Jaime, guardados em segredos em sua mente.
         A voz de Matilde saía de seu corpo, com o acariciar de seus cabelos e o apertar de sua alma. O floricultor se admirava com a mansidão; pétalas voavam pela rua, perfumando os cantos de ureia, de suco gástrico das noites perdidas, da alcóolica percepção dos olhares vazios. Sua voz entoava a alegria de Jaime, florescia a sua mente em êxtase e fazia pousar em seus ombros a alegria, um dia percebida. De sua boca saía o leite de Hera, dourado como o crepúsculo, doce como a brisa.
         Os lábios de Matilde foram dados a Afrodite, rosados e puros, doces e tenros. Entreabertos, chamavam por Jaime todo o amanhecer e bebiam de seu amor a cada despedida. As rosas do floricultor não exalavam o mesmo perfume dos lábios de Matilde. Os lábios de Matilde foram roubados, foram perdidos pelos ventos da maturidade. Afrodite os consumiu sem piedade e fez maltratar o coração de Jaime.
Em sua memória, vivem o corpo de Matilde, seu veneno, seus finos cabelos orientais, sua boca entreaberta a lhe chamar. O beijo de Matilde brotava lírios na mente de Jaime, ao seu redor, em seu espírito. Da mesma fonte que alimentava Hércules, caíam gotas que saciavam a paixão do velho cego.
         O floricultor olhou o relógio, o tempo havia passado. Era preciso vender os perfumes, enfeitar as janelas, os amantes haviam de se perdoar, se amar. Pegou seu carrinho e desceu a Rua dos Inválidos oferecendo suas rosas, as flores do campo, margaridas. Antes, deixou um Lírio rosáceo no chapéu de Jaime, alegre como a primavera, doce como os lábios de Matilde, suave como seus cabelos orientais.
A Rua dos Inválidos nunca ouviu cântico tão vibrante e perfumado quanto naquela tarde. 
Em mi maior.

(Continua...)

domingo, 1 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 4


 Un Sorriso in Autunno
Por Heder Leite

         E quando as folhas caem, Jaime sabe que suas cicatrizes são apenas marcas de uma antiga face, de uma antiga pele, antigo olhar, antigo pensar. O vento seco lhe enxuga as escaldantes e sofridas mãos; maltratam sua garganta, arranhada desde outrora. Empoeira suas lentes, embaça vitrines, carrega a chuva. As folhas e o vento seco encobrem o sorriso de Jaime, nas tardes sem gosto da Rua dos Inválidos. As escassas árvores se despem nessa época de sonho e imaginação. Levam alegria, trazem esperança, às vezes dor, às vezes fome. Jaime acompanha o voo lento de algumas folhas e imagina o que elas levam consigo; vê que não voam sozinhas e que sempre caem separadas. Jaime observa o vulto do outono, esconde a carapaça, deflagra suas manchas.
         Uma moça, vestida com uma blusa azul, desenhada com flores, coloridas como a sua mocidade, para em frente ao velho cego. Por sobre seu pé esquerdo, recai uma seca folha, bem diferente da estampa reluzente de seu vestuário. Veio de uma árvore que ainda vive naquela rua, pouco depois da Igreja. Passou por bêbados, ambulantes, reboques, lixeiras. Escolheu o pé daquela moça, bem vestida, de pele alva, temente ao Sol, de rosto alegre e confuso, ao mesmo tempo refletindo mistério e um tom de medo. A moça era alta, seus cabelos escurecidos; olhava Jaime de cima, sem altivez.
         Sua pele refletia um amor diferente, que outrora amada, possuída; agora escondida numa espécie de pedra mármore, como se precisasse de certa proteção. A moça de blusa azul florida deixava seus cabelos esvoaçantes dizerem o que queria; seu olhar não falava e escondia algo alegre, triste, gritante e mudo. Os vultos do outono confundiam a mente de Jaime, que não conseguia enxergar as flores na blusa da jovem moça; as folhas secas voavam em sua imaginação e invadiam a estampa da menina. Jaime pegou seu violino, espalhou a poeira, levantou e iniciou um novo cântico.
         Em fá maior, entoou com precisão e harmonia o que se propôs a tocar naquela tarde. O vento tentava atrapalhar o velho cego, mas não era capaz de retirar dele as notas, a vibração, a sua vontade. Enquanto um grupo de folhas secas repousava ao seu redor, percebia no olhar profundo da jovem moça uma alegria escondida, revelando sua alegre infância, sua duvidosa adolescência, seu primeiro amor não correspondido, sua primeira deselegância, os primeiros sinais da idade adulta. Um breve sorrisinho revelava uma doce e meiga alma, apesar do ressecamento de seu espírito. Jaime tentava decifrar o motivo, mas suas bochechas escondiam a outra parte do sorriso. As folhas secas, agora, pareciam cobrir a moça e a ressecava mais ainda. O vento, como leva a chuva e as folhas, levava o som de Jaime até o final da rua, levando as dúvidas e as certezas da mente da bela moça. Alguns pássaros pousavam em seus ombros, beliscando algumas folhas, cuspindo emoções, retirando a dor, acariciando sua alma, revelando a segunda parte do sorriso.
Jaime sorriu.
Viu a moça descer a Rua dos Inválidos alegre, pulando como uma criança, com a mente livre e liberta pelo carinho dos pássaros. As folhas ficavam pelo caminho, reunindo-se ao redor de outros transeuntes, carentes do olhar de Jaime, carentes dos bicos de alguns pássaros.
         
(Continua...)

terça-feira, 26 de junho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 3


Il Freddo dell'inverno
Por Heder Leite

O frio consome os mais fracos e injustiçados. Recai sobre os ombros castigados pela dor, pelo amor, pela esperança infundada. O frio queima a alma, arde às juntas, escaldeia a pele; faz sofrer a tez, maltrata as artérias e dilacera o coração. Nos poucos dias de frio que a Rua dos Inválidos viveu, Jaime esquentou-se com seus acordes, abraçado ao seu pequeno e cinza chapéu, esperando que o amanhecer trouxesse um novo sol, uma nova luz e um novo calor.
O inverno traz o cinza, leva as nuvens pra bem longe, ventilam o doce e suave sabor do aconchego, esquecido nas tardes calorentas da Cidade. Nas tardes frias de junho, com gotículas finas de chuva fria, Jaime espera por seus clientes, enquanto afaga o primeiro cão que lhe faz companhia desde a véspera solitária. As pessoas desfilam casacos encardidos, mofados. Coberturas enfeitam o horizonte; os olhos estão desmascarados, com os óculos escondidos nas gavetas e nos fundos das bolsas. Jaime poderia ver cara a cara, enxergar o mais íntimo do olhar alheio, entender a dor, decifrar a paixão, a angústia, o anseio. Resolveu levantar; resolveu tocar, apesar das gotículas, apesar do frio.
Em movimentos repetitivos, o som de seu violino alcançava o outro lado da rua. Seus pelos arrepiavam-se com o movimento, balançavam com o vento gelado e tremiam diante dos vultos que se esquivavam em parar a sua frente. Um jovem de pele clara parou na sua barraca e começou a admirar o seu canto. Pequenos movimentos em sua cabeça denunciavam uma vontade de seguir o ritmo escaldante do inverno. Seus olhos eram, porém baixos, e enxergavam o infinito, muito distante, sem uma convergência exata, sem um destino traçado, sem ao menos traços. O rapaz sentia o fundo da canção e parecia sonhar acordado, não parecia olhar diretamente para Jaime; seu olhar era distante, baixo, ressoando de leve sua cabeça, em movimentos rítmicos. Não vestia casaco e usava uma cobertura antiga, acinzentada como o tempo, como o céu, como sua alma.
Jaime continuava sua canção; sua fronte forçava o seu desejo e expressava certa dor. O relento aproximava o rapaz do velho louco. Suas calças pareciam moderninhas, fora da época de sua mente e de seu olhar. Seu olhar aproximava-o do passado, de seus erros, a ponto de sentir desespero e incerteza. Jaime acreditava nisso e continuava sua canção, apertando o violino contra o seu peito aberto e gelado. Escutava do rapaz suas penas, suas perdas e via em seus cílios entreabertos e embebidos com o orvalho seco um certo tom de desesperança. Jaime podia apenas tocar sua canção.
À luz de um feixe solar, cegando parcialmente sua limitada visão, viu o rapaz sentando na calçada, amarrando os seus calçados com um cadarço sujo de lama. Limpou suas mãos na própria calçada, levantou-se e seguiu rua abaixo, pouco antes do término da canção que Jaime entoava. Não deixou nada no chapéu do velho, apenas um longínquo olhar que lhe mostrava um futuro incerto e um presente conturbado e triste. Como o inverno sem agasalho, o frio sem abraço.
Em fá menor, Jaime interrompia sua canção e tentava enxergar ao fundo o destino do rapaz, perambulando a esmo pelo canto de sua rua, tropeçando nas esquinas de sua vida, caindo e levantando. A fina chuva havia cessado; Jaime sentou a frente de sua barraca, pegou seu velho chapéu e aqueceu o faminto cachorro que abraçava suas pernas desde as primeiras horas do dia.
Secou seu violino, alinhou suas cordas e dormiu.

(continua...)

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 2

Chaconne
Por Heder Leite

        O que Jaime enxergava era a semente de uma mente rica em lembranças, sonhos esquecidos, esperança abandonada, companhia solitária. Vultos se formavam a cada semblante que se aproximava, configurando uma rela de sentimentos escondidos, ocultos, guardados no mais íntimo de sua alma. As cores se confundiam com o outono; as gotas de chuva apagavam o colorido em seu cristalino. Sua lente estava arranhada, mas um pouco de luz ainda podia lhe invadir. A luz refletia nos cantos de um prisma oco, informando-lhe do desejo alheio, mentindo acerca de suas dores e omitindo o que realmente se via. Jaime podia ver o que sua mente quisesse e sentisse.
         A barraca do louco velho fica entre as ruas da Relação e a Av. Mem de Sá. Não vende nada, apenas dá. Aprendera tocar violino ainda no hospital Psiquiátrico com um companheiro, outro paciente. Desde então, toca algumas canções sem saber sequer os nomes, os autores, o que significam. Aprendeu as notas e só. Sempre foi o suficiente. Por debaixo de sua mesa, repousa um pequeno chapéu cinza, descosturado, castigado pelo tempo, refletindo bem o seu dono. Ali, as pessoas, que param e escutam o doce e grave som produzido pelo velho violino, colocam alguns trocados e moedas, alguns falsos, outros que nada mais valem. Alguns o fazem por desprezo e maldade; outros gostariam de retribuir-lhe o momento, mas não têm mais que um pedaço de papel com dizeres de boa sorte, folhetos de agiotas, de ourives, de casas noturnas. Jaime agradece a todos, esvazia o chapéu, encomenda a sua próxima refeição e observa o próximo cliente, para o qual oferece outra canção.
         Do outro lado da rua, Jaime vê se aproximar uma jovem moça, de cabelos longos e bem pretos. Sua pele é escaldante, reflexo do sol da tarde. A moça já deve ter castigado sua tenra tez desde as primeiras horas do dia, fato denunciado pelas manchas em sua camisa branca e um pouco transparente. As mangas amassadas indicavam que carregava uma bolsa, que decerto estava cheia. A moça parecia cansada e demonstrava interesse pelo cântico que Jaime entoava, em Ré menor, harmonicamente chamando sua atenção, ocluindo os olhos nos compassos e mexendo o seu corpo de tempo em tempo. Reluzia de seus olhos uma forte luz castanha, uma esclera limpa, cheia de esperança. Jaime acariciava seu violino como se estivesse consumindo a bela moça.
         Jaime via em sua pupila contraída que a moça era amorosa e densa. Bastaram alguns minutos de descanso e sua pele já reluzia um brilho incomum. Seu olhar longínquo indicava que sabia de seu destino, cruzava bem o seu objetivo e seus obstáculos. Tinha uma força meiga, capaz de destruir qualquer plano contrário. Seus cabelos balançavam com o vento e Jaime podia sentir o suave odor de sua fragrância; a moça demonstrava altivez e decisão. A suavidade de sua pele era sentida nas cordas de seu violino, seus cabelos reproduziam um som repetido, que Jaime tinha certeza de já ter visto antes. A moça brilhava à sua frente, pele reluzente, longos fios negros, altura mediana, traduzindo o som de suas angústias em tom maior.
         Tinha certeza de que estava atrás de seu grande amor e que deveras não o encontraria ali, na Rua dos Inválidos. Mas deve ter passado pela rua após visita na velha Igreja local. Sua bolsa deve ter ficado com alguma amiga que viria logo atrás para irem embora. Parecia estar planejando alguma saída, talvez uma noite nos bares da Lapa ou uma tarde de fotos em Petrópolis. A moça não parecia decidida quanto a isso. Desenhava seus longos e finos fios sobre os ombros e abaixava o olhar, confirmando toda a sua impressão. Ao som dos últimos acordes, a moça baixa uma nota de Real e dá as costas. Jaime entoa o fim de sua canção, certo de suas notas, certo do que viu.
         Sebastiana, uma senhora de 89 anos, teve uma tarde feliz na Rua dos Inválidos. Seguiu em direção à Praça Tiradentes, onde pegou seu ônibus e voltou satisfeita para sua casa.
Mas antes, prendeu seus longos cabelos com uma fita, que tinha guardada em sua bolsa. 


(Continua...)

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 1

O Arco-íris Tem Sete Cores
Por Heder Leite

         Jaime trabalha na rua, debaixo de sol ou de chuva; sente o cheiro das escórias, do absinto camuflado de gravatas, da baunilha derretida das crianças, do chocolate ressecado dos adolescentes, da impura fumaça opiácea, piscodélica, que adentra suas narinas sem pedir, que sai quando quer, e volta sem ser chamada. Seu alívio vem em dia de chuva, trazendo consigo o seco e suave odor de areia, capaz de levar por algum tempo o odor pútrido das entranhas de outrem. As ruínas das velhas casas revelam um passado abandonado. O piso descontínuo combina com os muros incompletos. Os transeuntes apressados opõem-se aos vagabundos solitários. A barraca de Jaime descansa bem na metade da rua; um ponto invejável.
         Havia uns dez anos que Jaime chegou naquela rua. Abandonado no início da idade adulta por loucura, fugiu do Hospital Psiquiátrico e perambula pelas ruas desde então. Conhece bem os viadutos, os perigos do acolhimento indevido, o clima interno das delegacias, o sabor das prostitutas e a dor dos hematomas merecidos. A Emergência dos hospitais conheciam bem o sujeito; já gastou nas salas de corte e costura alguns fios de nylon, reparando cortes na face, no dorso, nas pernas. Numa última visita à emergência do Souza Aguiar, chegou desacordado, levado pelos bombeiros militares de serviço na Presidente Vargas. Permaneceu nos corredores do hospital por algumas semanas, cuidado por um grupo de estudantes de medicina, ávidos pelo sentimento de salvar vidas, programando procedimentos, prescrevendo sua sorte e negociando com os staffs as novas condutas. Apesar de tudo, sobreviveu às condutas dos jovens doutores. Acordou numa cadeira fria de metal, amarrado com uma faixa de crepon, sentindo um ardor em seu braço esquerdo, de onde uma fina mangueira plástica preenchida de soro lhe hidratava. Algumas pessoas passavam à sua frente, sem ao menos lhe oferecer um “bom dia” ou “em que posso ajudar?”. Jaime estava fraco, uma ferida em seu dorso lhe ardia a alma. Fraco também estava o nó do crepon que se desfez sem trabalho. Jaime saiu pela porta da frente do hospital, cumprimentou o guarda e voltou ao seu lar.
         Perambulou por alguns dias pelas ruas do Centro, sem saber aonde ir. Tomava banho com a chuva de verão, secava-se com os jornais lidos. Jaime não sabia onde estava, o que havia acontecido. Procurou por alguma daquelas enfermeiras do Hospital Psiquiátrico, de que sentia saudades naquele momento. Foi guiado pelo destino à sua rua final, sem metrô ou viatura, com os dedos caleijados e a ferida cicatrizada. Seu olhar, porém, não era o mesmo. As cores eram turvas, os reflexos dolorosos. Não diferenciava os bandidos dos executivos quando lhe cuspiam à face. Não discernia as senhoras que lhe dava o resto do almoço das prostitutas que lamentavam sua condição atual. O destino sugeriu-lhe bem o seu endereço final.
         Jaime mora na Rua dos Inválidos.
         Jaime estava cego.