Le Fantôme
Por Heder Leite
A velhice era a doença de Jaime; a cegueira, a sua força.
Suas canções transpassavam a Rua dos Inválidos; eram ouvidas até na Praça da
República. As pessoas que se admiravam com seus cânticos levavam consigo os
tons mais modestos e mais agudos para casa. Levavam as expressões, o seu suor,
as suas lágrimas. Jaime deixava sua emoção aparecer, não conseguia esconder o
que sentia. Seu tom era sincero, sua música o decifrava. E não deixava mágoas
nem dúvidas. As pessoas levavam Jaime para casa, por completo.
Naquela tarde de outubro, Jaime não conseguia expressar os
seus tons como antes. Cansado e abatido, o velho cego parecia se entregar a
própria sorte. Não enxergava seu antigo companheiro, seu chapéu, outrora cheio
de bugigangas, encontrava-se vazio, assim como sua alma. Chorava a saudade de
Matilde, a angústia de Nicolau, as dúvidas alheias compartilhadas por todo esse
tempo. Exalava as flores por ali passadas, o suor por vezes ali pingado, os
xingamentos dos cidadãos solitários, a uréia dos moribundos e o
hálito doce e infiel das prostitutas. A Lapa saudava o velho cego, deixando-o
sóbrio, pronto para mais uma canção. Mas suas forças estavam perdidas.
Uma moça que passava naquela tarde, com seus longos cabelos
encaracolados, claros como o Sol, brilhantes como a Lua, pegou o chapéu de
Jaime, bateu contra sua roupa, como se tirasse alguma sujeira, e colocou em sua
cabeça. Sorriu para o velho cego e beijou sua testa. Tirou de sua bolsa uma
pequena máscara quebrada e cobriu o rosto de Jaime.
Um senhor que vestia um sobretudo, bem aquém das expectativas da bela moça, parou no outro lado da rua e, percebendo que Jaime o vira, sentou numa cadeira de bar vazia, esperando que a moça o visse, como se implorasse pelo seu olhar, por um beijo. Jaime se escorou em sua quebrada mesa, levantando-se, entoando uma nova canção.
Um senhor que vestia um sobretudo, bem aquém das expectativas da bela moça, parou no outro lado da rua e, percebendo que Jaime o vira, sentou numa cadeira de bar vazia, esperando que a moça o visse, como se implorasse pelo seu olhar, por um beijo. Jaime se escorou em sua quebrada mesa, levantando-se, entoando uma nova canção.
A máscara não impedia que Jaime visse o senhor do outro
lado da rua. Sua fronte denunciava os cânticos da nova estação, trazendo as
flores ainda perfumadas, ainda não inaladas pelos amantes. As pétalas que caíam
a sua frente formavam o buquê de sua noiva, presa, desaparecida. Jaime
percebera a angústia no coração daquele homem e entoava com força cada nota de
sua canção. Um grupo de homens e mulheres desciam a Rua dos Inválidos como
apoio ao velho cego e, com flautas e outros instrumentos, pararam em frente à sua
barraca. A bela moça dançava com os pombos que pousavam na calçada, o senhor
angustiado chorava a solidão. A máscara de Jaime reluzia o brilho daquela tarde,
como se quisesse se despedir de algo, como se pressentisse o pior.
Clarins e bumbos, violino e flautas. A Rua dos Inválidos acompanhava
o maior concerto que o velho jamais imaginara em participar. A moça olhava com
piedade, ajeitando-lhe o chapéu, acariciando sua crespa face, secando sua tez.
O senhor clamava em silêncio o seu amor, conformando-se com a escuridão do
momento. Receando pelo seu fim solitário, buscava a luz na máscara quebrada do
velho cego. Estimava compaixão, apreço, piedade.
Jaime deu sinais de cansaço quando os primeiros pingos
caíram em sua testa. A chuva afastava os pequenos animais e aproximava ainda
mais a bela moça do velho cego. Aos poucos, apenas o violino de Jaime era
ouvido. Os outros instrumentos eram consumidos pela fina chuva que caía àquela
hora. A Rua dos Inválidos em poucos minutos ficou deserta e apenas o senhor,
Jaime e a bela moça permaneciam, como se participassem de um duelo final. A
chuva tomava os cantos da rua, não sendo mais possível perceber a diferença
entre a calçada e o asfalto. A água barrenta invadia os sapatos sujos de Jaime,
esmorecia o seu sorriso, como se estivesse satisfeito com tudo o que fizera.
Olhou para o céu cinza, carregado, deixando que as gotas limpassem a sua
estranha máscara. Guardou seu violino e pegou a mão da bela moça. Por alguns instantes,
dançou com ela, ao som da música que saía de seu instinto e que só os dois
podiam ouvir. Como se nascesse de novo,
Jaime entregou a mão da moça ao senhor no outro lado da rua e sentiu os fortes
raios de calor entrarem em sua alma. Voltou à sua barraca, com suas roupas
encharcadas. Viu o casal descendo a rua de mãos dadas, feliz. Libertou-se Jaime
de seus fantasmas, de seus medos, deixando cair por sobre seus pés a sua
máscara.
Olhou
para o céu e viu o Sol brilhar. Percebera que seu cansaço não era definitivo.
Era só passageiro.
(Continua...)