Sueños de Verano
Por Heder Leite
Semanas
antes do Natal, Jaime presenciou uma pequena manifestação naquela rua. Podia
ouvir vozes conhecidas, soma de gritos e xingamentos, gargalhadas sobre o nada.
Não entendia bem o motivo, mas sabia que uma obra da prefeitura não agradava a
alguns de seus vizinhos. Sua barraca continuava intacta, a despeito do
movimento aumentado naqueles dias. Operários transitavam com seus capacetes
sujos de cimento, as roupas pesadas, sem saber se os protegiam dos perigos das
obras ou se aceleravam a sua morte com o calor intenso que produzia. O verão na
Rua dos Inválidos queima, ferve os sentimentos, aquece o âmago de Jaime. Para
espantar o intenso suor, o velho cego afina seu instrumento e toca sem cessar,
produzindo uma brisa suave em si, secando as gotas do trabalho, enxugando as
lágrimas de sua dor presente.
Enquanto
alguns manifestantes passavam pela sua barraca, Jaime entoava com sua cabeça
baixa e olhos fechados uma de suas canções da estação. Era responsável pelo
único vento que aquela rua tinha naquela manhã. Percebia os vultos de placas,
dos pés, dos braços erguidos, dos gritos sem nexo e frases fabricadas. No íntimo
de sua loucura, entendia a ineficiência daquele ato e se conformava com o
barulho, com o calor, com a poeira levantada que o sujava a cada manhã. Um jovem,
de pele morena, retirou seu capacete, enxugou o suor de sua face, sentou na
calçada, arregaçou um pedaço de suas mangas e abriu uma garrafa de água.
Com
barba rala, o jovem operário tinham músculos definidos, era alto e um olhar
profundo. Parecia enxergar além daquela rua, além do que sua mente pudesse
alcançar. Era um olhar cansado e ao mesmo tempo esperançoso, um olhar pronto
para a manhã que se inicia, para a noite de alegrias e desafogo. Um olhar ora
ansioso, ora conformado. O operário fazia companhia ao velho cego no seu curto
período de descanso, querendo abstrair os gritos de loucura, o silencio de sua
mente que tanto o enlouquece.
O cântico
invadia as suas entranhas, levando-o a lugares que sonhava desde sua infância.
Sentado naquela calçada, o jovem operário podia entrar nos grandes campos de
futebol, poderia ser um grande goleiro ou artilheiro. Sentia o cheiro do seu
consultório dentário, a leveza de suas gravatas e o peso de sua toga. Entre um
gole e outro, o alisar de Jaime nas cordas de seu violino. Entre um tom e
outro, os vários sonhos do operário.
Jaime
enxergava os vultos do operário, bebia de sua água, com gosto amargo da
solidão. Da ausência de seu pai, o grande sonho de sua recente juventude. Não
entendia a ausência, apenas sentia em seu olhar aquela carência, da figura
paterna de sua infância, das palmadas de exemplo que faltaram, dos carinhos
matutinos, das palavras ternas, dos braços nos ombros. Jaime entoava mais forte
e mais manso e o que saia dos olhos do operário o informava de toda sua
carência, sua lágrima se fundia ao inevitável suor de verão.
Jaime
ainda não percebera se a mente do operário era tão forte quanto os seus braços.
Tentava decifrar enquanto o seu olhar profundo falava mentiras e verdades do
seu passado e presente. Enxergava as lágrimas da dor, as dores do dia e da
noite. Falavam por si as emoções fraternais que outrora teve. A perda de uma
parte que foi um todo em sua história, o todo que faz falta em suas manhãs,
suas tardes, em sua vida. Jaime sabia que sua mente era mais forte que seus braços.
A
despeito de suas emoções, das placas infundadas e manifestos, esmagou a garrafa
já vazia, colocou-a no chapéu do velho cego, vestiu seu capacete levantou-se.
Armou-se com sua marreta, andou até o final da rua, atravessando pessoas de
bem, pessoas usadas, idosos, crianças, jovens. Olhou para trás, viu o velho
cego observando sua garrafa amassada e marretou suas memórias e sonhos contra
uma velha parede.
O
sol daquela manhã estava forte.
O de
Jaime, porém, era menor.
(Continua...)
Jaime vê melhor que nós, ele pode enxergar a alma mesmo vendo só vultos,bjss
ResponderExcluirJaime tem a intuiçao e a observação que muitos não tem.
ResponderExcluirTem a mente forte.
Zizi
Nossa, entrei hj e jah tinham 4 novos capitulos!!!
ResponderExcluirLi todos, tô adorando!! Muito legal, heder!!
Manda logo o proximo!!
:)