sábado, 18 de agosto de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 7

La sposa della notte
Por Heder Leite

         Por algum tempo, Jaime trabalhou bem próximo à esquina com a Rua da Relação. Ali conheceu o vulto dos anciãos, o apito dos pássaros, o alvoroço das crianças perdidas, a matriz de suas paixões. Permaneceu ali enquanto pôde. Por várias vezes, sentiu a umidade em suas coxas, o frio em seus tornozelos. Sempre que chovia um pouco mais, a Rua dos Inválidos alagava. E a mente de Jaime encharcava com seus sonhos, mergulhados em algum ponto do passado ainda vil, ainda lúcido, ainda vivo. Achou o velho cego que estava na hora de mudar de lugar; pegou seu chapéu furado, seguiu o andar mórbido de sua própria sombra e acolheu-se ao lado da Igreja Santo Antônio dos Pobres.
         Era sábado. A Rua dos Inválidos tinha um movimento incomum naquela noite. Jaime percebia as luzes de faróis, o barulho de vozes excitadas, ansiosas, alegres. O destino daquelas vozes era a Igreja. Não sabia dizer se se tratava de uma reunião, uma missa fora de hora. Garoava àquela hora e algumas pessoas corriam para dentro da paróquia. Algumas buzinas incomodavam os transeuntes; alguns moradores se chegavam às janelas; uns jovens angariavam uma vaga de cuidadores de carros, outros se acolhiam nos cantos da rua como curiosos, sem o quê fazer. Alguns se atiravam no meio dos outros com intenção maquiavélica, de tirar o que os outros não tinham, talvez a dignidade, o que Jaime não conhecia em sua pele, em sua longa sensação de fome e angústia.
         Naquela noite, um casamento movimentava a Rua dos Inválidos. Jaime ressoava sua leve e doce mente a momentos longínquos, sem saber o que sentir, sem tirar de sua mente o que realmente lhe enchia naquele instante. O véu da noiva balançava em sua linha de visão, podia perceber o suor e leveza da pele da bela moça, pele escaldante, alva, contrastando com seus fortes cabelos presos a arames invisíveis. Jaime entoou uma nova canção, num novo ponto da rua, ao lado da Igreja, bem perto dos pobres.
         A noiva, ao sair do carro, viu o velho cego acertando as cordas de seu instrumento; percebeu que a olhava com a fronte abaixo de sua linha de visão, como se tivesse medo do horizonte, do que viria, do que aconteceu. A noiva pediu um tempo, sentou-se a beira do carro e, a despeito dos pedidos alheios que entrasse na Igreja, pediu um guarda-chuva e observou o cântico de Jaime.
         Não queria lembrar de seus erros e suas mentiras; sentia a bateria de sua vida a poucos metros dali, a poucas palavras, resumida a um simples sim ou um simples piscar de olhos. A noiva transparecia em sua alva tez uma fuga jamais sentida, queria promessas, histórias pra contar. Queria voar, queria viver, queria saber o que fazia ali naquela hora. O cântico invadia sua alma, entendia o seu erro, trazia-lhe honras, salvas; seus olhos denunciavam a desigualdade deflagrada de seu coração. Trazia uma noiva a si, derramava em seu vestido acinzentado o óleo da tristeza e a angústia da solidão. Sabia que era hora de se libertar, de se prender, de pular, de cair, de se gostar e de odiar. A noiva sabia. Jaime também.
         A chuva não limitava o velho cego, que tocava cada vez mais forte, confundia o seu futuro com seu presente amargo e duvidoso. A noiva chorava a chuva em sua fronte, trazia o início para o fim e não conseguia enxergar o que via, de verdade. O que existia em sua mente transbordava na invisibilidade alheia, fazendo crer que sua fé se tornava perigosa, mas ainda sã. A chuva trazia um ar seco, as lembranças jamais esquecidas, os amores jamais amados, o desejo jamais realizado. A noiva queria o bem; Jaime achava que tocara bem, mas o dito repetido é mais forte, é o que marca, é o que fica. É o que mesmo debaixo de chuva se mantém seco, como o colo dos pais, dos amantes, dos corações puros.
         A noite repelia a insegurança; fazia forte o fraco, alto o baixo. O amor transbordava os absurdos, o medo, a malícia. Jaime confundia as mentes sãs e sábias daquela noite; a noiva atrasava o cerimonial. Eles se olhavam durante a canção que alimentava os ouvidos mais atentos da calçada; acordavam casas ao redor; mentiam para os santos que os observava; adoeciam as crianças mal alimentadas, debruçadas sob seu nariz; dormiam sob suas mentes enganadas e suadas. Jaime percebia nos lindos olhos castanhos escuros da noiva, combinados com a tonalidade de seus cabelos, uma louca vontade de amar e ser amada. Viu a noiva levantar-se, ao seu tempo; enxugar uma gota de lágrima barrenta em sua face, olhar a Lua por longos dois ou três segundos e seguir para a entrada da Igreja. Antes de entrar, porém, uma tórrida tempestade caiu sobre a Igreja Santo Antônio dos Pobres. Jaime se escondeu na Rua dos Inválidos, em algum canto onde pudesse encolher seu violino e descansar até Sol voltar. Não pôde ouvir o sim da noiva, tampouco experimentar do arroz do matrimônio.
Os espelhos se quebraram e Jaime não enxergou o reflexo da sua noiva naquela noite, que agora canta em Fá ou Só em sua pobre e cega mente.

(Continua...)

2 comentários:

  1. NOSSA!!! Como assim??? E a noiva?? casou ou desistiu???? Fiquei mto abalada com essa história, heder!! Esse Jaime tá causando mto tumulto!!!

    ResponderExcluir
  2. e aí??? Essa historia nao continua não????? =]

    ResponderExcluir

Obrigado pelo seu comentário!