Parte I - Uma Simples Cirurgia
Por Heder Leite
Ana chegou ao hospital conforme
combinado com a equipe cirúrgica: às 6h, em jejum, pronta para a cirurgia. Era
sua terceira ao longo de seus 64 anos. Sem contar, é claro, com os partos. Os
nascimentos de Gustavo e Guilherme foram à moda tradicional, sem anestesia, sem
sedação, mas com auxílio de lâmina e bisturi. Cirurgias, portanto.
Mas naquele dia, Ana seria submetida a
uma colecistectomia (retirada da vesícula biliar). Uma simples cirurgia, como
dizem alguns cirurgiões. Mas nada que ultrapasse a fina camada de pele que
reveste nosso corpo pode ser considerado como simples. Ana acreditou que
simples fosse.
Não podia contar com Alfredo, que há
três anos a tinha deixado após um inesperado (é claro) infarto. Depois de
longos seis meses de luto, Ana iniciou uma fase de independência. Seus filhos
não se falavam desde a morte do pai. Nada tirava da cabeça de Guilherme que os
problemas de Gustavo levaram o pai ao infarto. E Guilherme, muito mais que o
irmão, era unha e dente com o pai. Assim, Ana ia a médicos, cinema, restaurante,
viajava sozinha. No máximo, convidava alguma de suas amigas, que fez
recentemente na academia. Mas com os filhos ela conseguiu falar na véspera.
Disse que seria operada, mas que não se preocupassem, dois dias depois já
estaria em casa.
A cirurgia transcorreu de forma
tranquila. Duas horas e meia, sem intercorrências, sem surpresas. Operada, Ana
foi transferida para o quarto, conforme previsto. Chegou por volta das 15h,
ainda sonolenta, pediu para molharem sua boca. Sabia que nada podia beber.
Cochilou, sentiu dor, pediu remédio, olhou pra janela, sentiu dor de novo,
enfim, pós-operatório habitual.
Aquele não era um dia comum, pelo menos
para a maioria dos brasileiros. Era dia de jogo da Seleção em Copa do Mundo. O
Brasil jogaria com a Holanda e muitos foram para casa mais cedo. Menos no
hospital. O hospital não é um escritório jurídico ou uma sala de consultoria
que fecha as portas e os problemas podem ser resolvidos amanhã. Não existe uma
empresa igual ao hospital. Nada para. O mundo gira, o dólar cai, o dólar sobe,
avião cai, bancos em greve, uma nova versão do Windows é criada e o hospital
não para. A Seleção Brasileira joga e o hospital... não para!
Era 19h. O jogo há muito tinha
terminado. O Brasil perdera, muitos comentavam nos corredores, os “técnicos” de
futebol indicavam todos os erros que a Seleção cometera. Uns apontavam o
técnico como o culpado, outros o goleiro. Alguns estavam virados de plantão e
não conseguiam comentar. Não havia outro tema na TV, nos rádios, na internet.
“O Brasil está eliminado da Copa do Mundo de 2010”, era a manchete. Esta frase,
muitas vezes dita, sempre trazia um tom amargo, deprimente. Vinha em anexo um
vazio, um vácuo, transmitidos por milhares de vozes embargadas. Incrível como
realmente isso sempre mexeu com o povo brasileiro. Ninguém ouviu fogos nas
ruas, cornetas, gritos de “Brasil!”, batuque, tambor. Ninguém ouviu a
campainha; ninguém ouviu o chamado de Ana. Ninguém mais ouvia a voz de Ana.
Apenas um grito:
–
Parada
cardíaca no 710! Chamem o médico!
(Continua...)
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