La Campanella
Por Heder Leite
A expressão de terror, angústia e desespero é uma realidade
naqueles que transitam a Rua dos Inválidos. As constantes cheias, os manifestos
improdutivos, a gritaria que silencia em nada, o choro das crianças perdidas, o
hálito de boldo das prostitutas da Lapa. Tudo em sua mente, Jaime sente cada
etapa dessas intempéries, cada odor e cada som que vêm não sabe ele de onde.
Apenas sente. Mesmo debaixo de um escaldante sol, sem molhar a esmo sua tórrida
faringe, o velho se levanta e deixa vir em sua tez os raios que a fazem escura
e cintilante. Passa um pano sujo em seu bornal, espera que o alimentem até o
final do dia e inicia uma nova canção.
Um senhor branco, bem alto e meio desengonçado para em
frente à barraca de Jaime. Está a admirar o seu ainda baixo cântico, não
sabendo ainda discernir a tonalidade, apesar de suas grandes orelhas. Jaime
percebera que além de suas orelhas grandes e disformes, aquele senhor possuía
um nariz desproporcional, suas narinas abertas consumiam boa parte do bom e do
mau odor que a Rua dos Inválidos proporcionava. Encarava o velho cego abrindo
ainda mais suas narinas, como se aspirasse alguma coisa de sua barraca. Talvez
um alimento perdido, uma fruta ainda comestível, uma bebida que lhe fosse à
mente, talvez a destruindo, ou simplesmente a alimentando. O senhor alto de
orelhas e nariz grandes brindava a nova canção com os transeuntes, com um olhar
medonho, com sobrancelhas levantadas e olhos apenas entreabertos, como se
quisesse investigar ou descobrir algo. Jaime pouco sentira medo em sua vida,
apesar das noites isolado no hospício, das tardes frias de julho, dos viadutos
de sua cidade, das macas geladas dos hospitais por onde passou. Jaime sentira
um certo medo daquele senhor. Mas continuava a tocar.
Percebera que seu olhar não passara pela Igreja Santo Antônio
dos Pobres. Era como se tivesse um pacto. Sua barba cortada antes do queixo,
modelando um desenho da costeleta a sua bochecha, se contrapunha ao seu
esvoaçante cabelo. Era inquieto, meio crespo e liso. Jaime tentava não entender
sua mente; tentava não acariciar o olhar daquele senhor. Mas já o fitava querendo
mais, querendo decifrar o que aquela mente dizia, ou pelo menos diria se
quisesse. Aquele senhor, de barba desenhada, cabelos longos e esvoaçantes,
desengonçado por sua altura, de olhos diabólicos, narinas e orelhas gigantes,
fitava o velho cego e parecia exigir do seu melhor, exigir as melhores notas, o
melhor concerto, a melhor canção.
Suas mãos mostravam longos dedos, os maiores que o cego
jamais vira. Jaime completava sua efêmera descrição do que considerava o ser
humano mais feio e horrendo que possa ter visto. Se não fosse o próprio diabo,
aquele homem estaria bem próximo daquele título. Jaime podia perceber sua
atração pelo mal, seus dias libertinos, seus prazeres noturnos. Era senhor de
vida desregrada, talvez boêmio, talvez doente. Não o tinha visto pelos bares da
Lapa ainda e sua presença seria facilmente percebida. Jaime sabia que aquele
senhor era estrangeiro, não frequentava a Rua dos Inválidos. O senhor ouvia
atentamente a canção de Jaime, permitindo que o velho cego decifrasse seus
desejos e suas virtudes, além, de um pouco de suas maledicências.
Queria brindar seus últimos dias de vida passando por
aquelas ruas. Queria desfrutar dos prazeres das ruas do Senado, do Rezende, antes
de parar na rua de Jaime, na rua de todos os inválidos. Queria se encontrar com
seu amigo de hospício, que não pudera compartilhar bons momentos por entraves
da vida cotidiana dos loucos. Tentava encobrir-lhe os olhos, não deixando Jaime
ver quem abrira a porta da frente do Hospital Psiquiátrico de onde Jaime
fugira. Aquelas mãos longas puderam abrir a maçaneta e mudar o destino do velho
cego. Sofrera por anos naquele lugar, sendo tratado por vezes como um monstro,
por vezes como um inválido desengonçado e feio. Trouxe consigo o ódio e a
blasfêmia, além da solidão que a Reforma Psiquiátrica lhe deu. Não encontrou em
sua família o abrigo necessário, perambulou a procura de algum amigo, fez
maldades nas ruas, brindou o sangue alheio, machucou o próprio coração. Em sua
mente, porém, Jaime se enxerga e consegue estimar carinho e amor, escondidos no
coração daquele horrendo homem.
O senhor gigante parecia satisfeito pela canção que acabara
de ouvir; tentava deambular, mas, com suas longas pernas, tropeçava em si
mesmo. Alguns metros a frente, olhou para o velho cego e parecia querer se
despedir. Como da última vez que o vira, fechou os portões a sete chaves e seguiu
só em direção aos Arcos, onde jazem parte de seus pulmões, já consumidos pela
tuberculose que o mata dia após dia.
Percebendo que seu bornal fora preenchido, Jaime sentou para
comer, logo após terminar sua canção. E lembrou de um certo Nicolau, o monstro
do Hospital Psiquiátrico, que diziam ter as chaves da liberdade. Jaime guardara
essa lenda em sua mente, contada pelos médicos e enfermeiros daquele lugar.
Diziam que aquela era a verdadeira porta do inferno, que só podia ser aberta
por um guardião como Nicolau.
Jaime nunca acreditou nessa lenda.
(Continua...)
Talvez esse outro que parece tão horrendo seja o reflexo do próprio Jaime, julgamos tantos e nos amedrontamos tanto com o outro quando na verdade os horrores estão em nossa alma, Jaime me fez pensar nisso.
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