sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 8


La Campanella
Por Heder Leite

         A expressão de terror, angústia e desespero é uma realidade naqueles que transitam a Rua dos Inválidos. As constantes cheias, os manifestos improdutivos, a gritaria que silencia em nada, o choro das crianças perdidas, o hálito de boldo das prostitutas da Lapa. Tudo em sua mente, Jaime sente cada etapa dessas intempéries, cada odor e cada som que vêm não sabe ele de onde. Apenas sente. Mesmo debaixo de um escaldante sol, sem molhar a esmo sua tórrida faringe, o velho se levanta e deixa vir em sua tez os raios que a fazem escura e cintilante. Passa um pano sujo em seu bornal, espera que o alimentem até o final do dia e inicia uma nova canção.
         Um senhor branco, bem alto e meio desengonçado para em frente à barraca de Jaime. Está a admirar o seu ainda baixo cântico, não sabendo ainda discernir a tonalidade, apesar de suas grandes orelhas. Jaime percebera que além de suas orelhas grandes e disformes, aquele senhor possuía um nariz desproporcional, suas narinas abertas consumiam boa parte do bom e do mau odor que a Rua dos Inválidos proporcionava. Encarava o velho cego abrindo ainda mais suas narinas, como se aspirasse alguma coisa de sua barraca. Talvez um alimento perdido, uma fruta ainda comestível, uma bebida que lhe fosse à mente, talvez a destruindo, ou simplesmente a alimentando. O senhor alto de orelhas e nariz grandes brindava a nova canção com os transeuntes, com um olhar medonho, com sobrancelhas levantadas e olhos apenas entreabertos, como se quisesse investigar ou descobrir algo. Jaime pouco sentira medo em sua vida, apesar das noites isolado no hospício, das tardes frias de julho, dos viadutos de sua cidade, das macas geladas dos hospitais por onde passou. Jaime sentira um certo medo daquele senhor. Mas continuava a tocar.
         Percebera que seu olhar não passara pela Igreja Santo Antônio dos Pobres. Era como se tivesse um pacto. Sua barba cortada antes do queixo, modelando um desenho da costeleta a sua bochecha, se contrapunha ao seu esvoaçante cabelo. Era inquieto, meio crespo e liso. Jaime tentava não entender sua mente; tentava não acariciar o olhar daquele senhor. Mas já o fitava querendo mais, querendo decifrar o que aquela mente dizia, ou pelo menos diria se quisesse. Aquele senhor, de barba desenhada, cabelos longos e esvoaçantes, desengonçado por sua altura, de olhos diabólicos, narinas e orelhas gigantes, fitava o velho cego e parecia exigir do seu melhor, exigir as melhores notas, o melhor concerto, a melhor canção.
         Suas mãos mostravam longos dedos, os maiores que o cego jamais vira. Jaime completava sua efêmera descrição do que considerava o ser humano mais feio e horrendo que possa ter visto. Se não fosse o próprio diabo, aquele homem estaria bem próximo daquele título. Jaime podia perceber sua atração pelo mal, seus dias libertinos, seus prazeres noturnos. Era senhor de vida desregrada, talvez boêmio, talvez doente. Não o tinha visto pelos bares da Lapa ainda e sua presença seria facilmente percebida. Jaime sabia que aquele senhor era estrangeiro, não frequentava a Rua dos Inválidos. O senhor ouvia atentamente a canção de Jaime, permitindo que o velho cego decifrasse seus desejos e suas virtudes, além, de um pouco de suas maledicências.
         Queria brindar seus últimos dias de vida passando por aquelas ruas. Queria desfrutar dos prazeres das ruas do Senado, do Rezende, antes de parar na rua de Jaime, na rua de todos os inválidos. Queria se encontrar com seu amigo de hospício, que não pudera compartilhar bons momentos por entraves da vida cotidiana dos loucos. Tentava encobrir-lhe os olhos, não deixando Jaime ver quem abrira a porta da frente do Hospital Psiquiátrico de onde Jaime fugira. Aquelas mãos longas puderam abrir a maçaneta e mudar o destino do velho cego. Sofrera por anos naquele lugar, sendo tratado por vezes como um monstro, por vezes como um inválido desengonçado e feio. Trouxe consigo o ódio e a blasfêmia, além da solidão que a Reforma Psiquiátrica lhe deu. Não encontrou em sua família o abrigo necessário, perambulou a procura de algum amigo, fez maldades nas ruas, brindou o sangue alheio, machucou o próprio coração. Em sua mente, porém, Jaime se enxerga e consegue estimar carinho e amor, escondidos no coração daquele horrendo homem.
         O senhor gigante parecia satisfeito pela canção que acabara de ouvir; tentava deambular, mas, com suas longas pernas, tropeçava em si mesmo. Alguns metros a frente, olhou para o velho cego e parecia querer se despedir. Como da última vez que o vira, fechou os portões a sete chaves e seguiu só em direção aos Arcos, onde jazem parte de seus pulmões, já consumidos pela tuberculose que o mata dia após dia.
         Percebendo que seu bornal fora preenchido, Jaime sentou para comer, logo após terminar sua canção. E lembrou de um certo Nicolau, o monstro do Hospital Psiquiátrico, que diziam ter as chaves da liberdade. Jaime guardara essa lenda em sua mente, contada pelos médicos e enfermeiros daquele lugar. Diziam que aquela era a verdadeira porta do inferno, que só podia ser aberta por um guardião como Nicolau.
         Jaime nunca acreditou nessa lenda.
         
(Continua...)

Um comentário:

  1. Talvez esse outro que parece tão horrendo seja o reflexo do próprio Jaime, julgamos tantos e nos amedrontamos tanto com o outro quando na verdade os horrores estão em nossa alma, Jaime me fez pensar nisso.

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