domingo, 1 de julho de 2012

Reflexos de Uma Lente Opaca - Parte 4


 Un Sorriso in Autunno
Por Heder Leite

         E quando as folhas caem, Jaime sabe que suas cicatrizes são apenas marcas de uma antiga face, de uma antiga pele, antigo olhar, antigo pensar. O vento seco lhe enxuga as escaldantes e sofridas mãos; maltratam sua garganta, arranhada desde outrora. Empoeira suas lentes, embaça vitrines, carrega a chuva. As folhas e o vento seco encobrem o sorriso de Jaime, nas tardes sem gosto da Rua dos Inválidos. As escassas árvores se despem nessa época de sonho e imaginação. Levam alegria, trazem esperança, às vezes dor, às vezes fome. Jaime acompanha o voo lento de algumas folhas e imagina o que elas levam consigo; vê que não voam sozinhas e que sempre caem separadas. Jaime observa o vulto do outono, esconde a carapaça, deflagra suas manchas.
         Uma moça, vestida com uma blusa azul, desenhada com flores, coloridas como a sua mocidade, para em frente ao velho cego. Por sobre seu pé esquerdo, recai uma seca folha, bem diferente da estampa reluzente de seu vestuário. Veio de uma árvore que ainda vive naquela rua, pouco depois da Igreja. Passou por bêbados, ambulantes, reboques, lixeiras. Escolheu o pé daquela moça, bem vestida, de pele alva, temente ao Sol, de rosto alegre e confuso, ao mesmo tempo refletindo mistério e um tom de medo. A moça era alta, seus cabelos escurecidos; olhava Jaime de cima, sem altivez.
         Sua pele refletia um amor diferente, que outrora amada, possuída; agora escondida numa espécie de pedra mármore, como se precisasse de certa proteção. A moça de blusa azul florida deixava seus cabelos esvoaçantes dizerem o que queria; seu olhar não falava e escondia algo alegre, triste, gritante e mudo. Os vultos do outono confundiam a mente de Jaime, que não conseguia enxergar as flores na blusa da jovem moça; as folhas secas voavam em sua imaginação e invadiam a estampa da menina. Jaime pegou seu violino, espalhou a poeira, levantou e iniciou um novo cântico.
         Em fá maior, entoou com precisão e harmonia o que se propôs a tocar naquela tarde. O vento tentava atrapalhar o velho cego, mas não era capaz de retirar dele as notas, a vibração, a sua vontade. Enquanto um grupo de folhas secas repousava ao seu redor, percebia no olhar profundo da jovem moça uma alegria escondida, revelando sua alegre infância, sua duvidosa adolescência, seu primeiro amor não correspondido, sua primeira deselegância, os primeiros sinais da idade adulta. Um breve sorrisinho revelava uma doce e meiga alma, apesar do ressecamento de seu espírito. Jaime tentava decifrar o motivo, mas suas bochechas escondiam a outra parte do sorriso. As folhas secas, agora, pareciam cobrir a moça e a ressecava mais ainda. O vento, como leva a chuva e as folhas, levava o som de Jaime até o final da rua, levando as dúvidas e as certezas da mente da bela moça. Alguns pássaros pousavam em seus ombros, beliscando algumas folhas, cuspindo emoções, retirando a dor, acariciando sua alma, revelando a segunda parte do sorriso.
Jaime sorriu.
Viu a moça descer a Rua dos Inválidos alegre, pulando como uma criança, com a mente livre e liberta pelo carinho dos pássaros. As folhas ficavam pelo caminho, reunindo-se ao redor de outros transeuntes, carentes do olhar de Jaime, carentes dos bicos de alguns pássaros.
         
(Continua...)

2 comentários:

  1. Olá Heder!
    Que lindo texto!!!Vou te seguir pois quero sempre voltar aqui.
    quero te convidar para vir conhecer o meu blog.
    http://cacaujafet.blogspot.com
    abs

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